sábado, 27 de abril de 2013

OS CONTRATOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM MATÉRIA AMBIENTAL


Os contratos da Administração Pública em matéria AmbientAL

Desde os anos 70 (início da proteção constitucional dos direitos de 3ª geração) em diante, a matéria de salvaguarda ambiental tornou-se evidente e com isso, novas formas jurídicas de tratamento das mesmas, no que toca a tipos instrumentos de utilizados. Passando-se de instrumentos essencialmente unilaterais, que se baseavam na vontade unilateral dum interveniente, normalmente a Administração Pública, seja através de leis, regulamentos, portarias, entre outros, para instrumentos de cariz bilateral, que abarcam em si uma ideia de concertação, acordo de vontades (pelo menos duas)[1], isto já no início dos anos 90.
Considerado este objeto como uma das novas funções do Estado, expressamente consagradas na Constituição, cabe portanto à Administração criar o suporte para um ambiente sem qualquer tipo de perturbação de maior[2].
A visão da Administração como “polícia” que administrativamente controlava, condicionava, sancionava os ilícitos ambientais, deixou de ser considerada (pelo menos exclusivamente) como tal, e ao que se lhe juntou a função, bem menos repressiva, ainda que interventiva, de promoção dum ambiente sustentável e equilibrado.
Tendo em conta as “novas” responsabilidades do Estado, e para melhor alcançar esta ideia de sustentabilidade do ambiente, que se centravam apenas na imposição de medidas aos particulares, passou-se a recorrer à figura da concertação, contratualização, no que toca à política ambiental.
Surgem assim os primeiros contratos que tratam de matéria ambiental, celebrados entre a Administração e os particulares. Destacam-se os contratos de promoção e os de adaptação ambiental, que mais adiante desenvolverei.
Assiste-se, portanto, a uma maior difusão do uso de instrumentos bilaterais ou consensuais pela Administração, que vulgarmente se chamam de contratos administrativos.[3]
Uma vez que o próprio Direito do Ambiente, tem a sua génese no Direito Administrativo, também este tem “sofrido” com o abandono dos normais instrumentos de trabalho da Administração no exercício das suas funções, nomeadamente a lei, o regulamento, as portarias, entre outros, e a passagem à “contratualização” desta matéria.[4]
Dois dos principais contratos em matéria ambiental, são o contrato de promoção ambiental e o contrato de adaptação ambiental.
Fazendo agora uma pequena destrinça relativamente a cada um no que toca ao seu fim, sujeitos, objeto fiscalização e sanções[5].
Quanto ao seu fim, o primeiro, destina-se “à promoção da melhoria da qualidade das águas e da proteção do meio aquático” (consta do art. 68º D.L. nº 236/98 de 1 de Agosto); já o segundo incide sobre a “adaptação à legislação ambiental em vigor e à redução da poluição causada pela descarga de águas residuais no meio aquático e no solo” (consta do art. 78º D.L. nº 236/98 de 1 de Agosto).
Tem como principais sujeitos, e uma vez que estamos perante contratos, (considerando-se o contrato como simples acordo de vontade”s”, pressupondo por isso pelo menos 2 partes) ambos têm como intervenientes dum lado a entidade administrativa (podendo ser o Ministério do Ambiente, e o Ministro responsável pelo sector de atividade económica e por outro as associações representativas dos sectores (que podem ser dos mais variados, como por exemplo o industrial, agro-alimentares, pecuária, entre outros), as empresas que venham a aderir ao acordo, as instalações das unidades empresariais do sector (tendo em conta que é necessário dividir esta parte em dois momentos: o da negociação, que cabe às associações e o da adesão, que cabe às empresas no geral).
No que toca ao objeto dos contratos, desde logo se verifica uma diferença, pois o primeiro apenas trata da criação de um prazo e a definição de um calendário, pelo qual os particulares se comprometem a respeitar as normas de proteção do meio aquático; o segundo consiste na concessão de um prazo e a fixação de um calendário para os particulares se adaptarem à legislação ambiental em vigor[6].
Por fim a fiscalização e sanções no contrato de promoção o plano e calendário instituem a referência para a fiscalização da atividade das instalações das empresas aderentes. Se se verificar uma violação do plano, notifica-se a entidade que gere as instalações e estabelece-se um prazo para se corrigir e as consequências da não correção voluntária (art.68º nº 3, 6, 7 e 8 D.L. nº 236/98); nos contratos de adaptação, o plano e o calendário passam a ser aceites como menção para a fiscalização da atividade das instalações das empresas, quanto ao cumprimento das suas obrigações ambientais. Caso se verifique, também se notificará a empresa para voluntariamente corrigir as faltas sob pena de exclusão do contrato (art 78º nº6, 7 e 8 do D.L 236/98) pela entidade administrativa parte do contrato.
Feito este pequeno roteiro pelos contratos de promoção e adaptação ambiental, cabe agora, retomando a dificuldade de aceitação desta nova forma de atuação da administração pelo menos relativamente a esta matéria, fazer referência aos princípios que se contrapõem nesta questão, o princípio da legalidade e o princípio da eficácia.
Sendo que a própria e (compreensiva) rigidez característica dos instrumentos unilaterais da administração, respeitam por si o princípio da legalidade, tem-se assistido a uma cedência perante um outro princípio, o da eficácia, tentando com isso atingir novos (nunca descurando dos já atingidos ou como definidos a atingir pelo princípio da legalidade) objetivos, tais como na impossibilidade de assegurar o cumprimento da lei, cabe-lhe tentar fazer cumprir o que for possível[7], fazendo-o por derrogação temporária de prazos, ou outros.
Pretende-se portanto, com outros instrumentos administrativos, o contrato, atingir os mesmos fins ou efeitos, que em matéria ambiental são a sustentabilidade, prevenção, aproveitamento racional dos recursos, entre outros, alertando-se com isto também para a consciência dos particulares que com a Administração contratem, pois uma vez celebrado um contrato (que também é passível de incumprimento) o tentem cumprir honradamente até ao fim.
Certos autores[8], falam em “crise do princípio da legalidade” que se explica por vários fatores, a incapacidade da Administração em executar os comandos legais, uma vez que a lei não chega tão perto da realidades em que a mesma tem que intervir; os pedidos de eficácia que são reclamados à atuação Administrativa, que só se consegue, se se atribuir maior liberdade e discricionariedade, e com isso uma maior margem de livre apreciação, pois a rigidez da própria lei não postula necessariamente eficácia; a par disto, o quadro valorativo da ação administrativa que a lei determina também não demonstra qual a melhor maneira para obter esses resultados, pois só através duma observação da realidade que se vive, é que se perceciona o equilíbrio entre os interesses privados e os interesses públicos.
Fala-se ainda duma hetero-determinação legal, problema que se coloca em relação à imposição constitucional da Administração apenas poder agir sob habilitação legal que fixe minimamente os pressupostos, efeitos e fins do poder que lhe é atribuído. Pois só a própria Administração sabe quais os instrumentos mais capazes para obtenção de certos resultados[9] e prossecução de determinados fins.
Não se quer com isto dizer que o princípio da legalidade se dissipou, apenas se tem remetido o mesmo para um segundo plano, aliás de todo o modo este princípio, a meu ver, necessita sempre estar presente, pois, duma maneira ou de outra é a lei que no fundo define se a Administração pode atuar ou não, e em que termos. Portanto esta crise, que o princípio da legalidade, que falam certos autores parece-me verosímil, mas apenas no ponto de que a “normal” atuação da Administração deixou de ser unilateral, e tem abraçado outras formas de atuação, tais como as bilaterais, através de acordos, contratos, concertações, tendo em vista ainda um outro ponto igualmente importante, a participação dos particulares em matéria ambiental. E sem por isso se deixar de garantir a segurança jurídica dos particulares e à Administração a prossecução e concretização do interesse público.
Clarificando agora a natureza dos contratos ambientais, a noção de contrato, similar em todos os ramos de direito, é acordo vinculativo entre duas declarações de vontade contrapostas, mas harmonizáveis[10]. De igual modo trata o CPA no art. 178º, o contrato administrativo, apenas se distingue do “civil” pelo facto de uma das partes ser a Administração, e tende a estabelecer uma relação jurídico-administrativa, não importando que pessoa o faz, pessoa coletiva de direito público ou pessoa coletiva de direito privado mas em exercício de funções públicas.
Diz-se, então, contrato pelas razões atrás referidas: existência de duas vontades (que se contrapõe ao ato, cuja característica é a existência de uma só vontade); contrapostas, mas harmonizáveis. Por outro lado diz-se administrativo por ser celebrado com uma entidade administrativa (ou entidade privada que exerce funções públicas), substitui a emissão de um ato administrativo, e pelo facto do seu objeto conter matérias que são constitucionalmente atribuídas à função administrativa. Com isto se conclui que os contratos ambientais, são contratos e são administrativos[11].
Definido que os contratos ambientais são administrativos e visam um acordo de vontades, têm como principais bases legais o art. 179º do CPA que refere que o contrato administrativo pode ser celebrado, na prossecução das atribuições da pessoa coletiva em que se integram. Outra base legal a principal em matéria ambiental é a Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87), que no seu art. 35º/2 refere a possibilidade da Administração pode celebrar contratos-programa. Outras bases legais que se podem ter em conta são os D.L. n 236/98 (que revoga o D.L. n 74/90), estabelece normas, critérios e objetivos de qualidade com a finalidade de proteger o meio aquático e melhorar a qualidade das águas em função dos seus principais usos, no âmbito dos quais é possível celebrar (nos termos dos art. 68º e 78º) contratos ambientais; D.L. nº 352/90 que no seu art. 17º determina que podem ser celebrados acordos referentes às emissões atmosféricas e à qualidade do ar; o D.L. nº 384/87 (alterado pelos D.L nº 157/90 e pelo D.L. nº 319/2001) que consagra o regime dos contratos-programa...
Em jeito de conclusão os contratos ambientais, tema deste trabalho, toleram uma adaptação dos métodos de produção das empresas, que ao invés de pagarem coimas, comprometem-se a que dentro do prazo estabelecido consigam cumprir os limites de poluição que são exigidos.
Tal como refere Jacqueline Morand-Deviller[12] “ o acordo entre as partes é preferível à utilização de procedimentos sancionatórios, a participação dos suspeitos faz deles cúmplices, o que parece mais eficaz do que a repressão”. Concordo com esta afirmação, visto que parece-me evidente que as empresas iriam optar por este tipo de contrato, já que dispõe de um prazo para que possam reformular as suas estruturas e assim conseguir cumprir a lei, não estando assim constantemente a violar as disposições legais e correndo o risco de ser sancionadas severamente.
Parece-me aceitável que os contratos ambientais sejam adotados como forma de atuação perante certas matérias no âmbito das funções administrativas, uma vez que pressupõem a participação, coordenação com os particulares, e ainda mais, levam em conta que ao serem celebrados, lhes seja permitido desenvolver a sua atividade económica (não limitando completamente a liberdade de atividade económica), sem que para isso sejam constantemente advertidos de que estão em violação dos limites de poluição, sendo-lhes dado o período de adaptação à legislação que atribui uma certa folga até se sentirem capazes de respeitar os limites legais.



Bibliografia
·         Kirkby, Mark Bobela-Mota, " Os contratos de adaptação ambiental: a concentração entre a administração pública e os particulares na aplicação de normas de polícia administrativa”; Lisboa: AAFDL, 2001
·         Morand-Deviller, Jacqueline “Le Dorit de l’Environnement”, P.U.F, Paris.2000
·         Silva, Vasco Pereira da, “Verde Cor de Direito, Lições de Direito de Ambiente”, Almedina, 2002.
·         Maçãs, Maria Fernanda – “Os Acordos Sectoriais Como Instrumento da Política Ambiental” Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, Urbanismo e Ambiente
·         Silva, Duarte Rodrigues “Os Contratos de Adaptação Ambiental”, Tese Mestrado - 2000

Bruno Costa
Nº 17207 – Subturma7


[1] Maria Fernanda Maçãs, Os Acordos Sectoriais como Instrumento da Política Ambiental, pág. 37
[2] Mark Kirkby, Os Contratos de Adaptação Ambiental, pág. 13
[3] Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, pág. 209
[4] Palavras de Vasco Pereira da Silva
[5] Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, pág. 212
[6] E com isso não serem sujeitos às sanções que estão estabelecidas por desrespeito dos valores de poluição que são permitidos por lei.
[7]  Mark Kirkby, Os Contratos de Adaptação Ambiental, pág. 45 e ss
[8] Mark Kirkby, Os Contratos de Adaptação Ambiental, pág. 48
[9] Mark Kirkby, Os Contratos de Adaptação Ambiental, pág.  51
[10] Duarte Rodrigues Silva, Os Contratos de Adaptação Ambiental, pág. 26
[11] Mark Kirkby, Os Contratos de Adaptação Ambiental, pág. 96
[12]Em:  Le Droit de L’environnement

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A Responsabilidade Civil Objectiva Ambiental: o art. 7.º do Decreto-Lei 147/2008


 Para uma abordagem correcta da problemática em questão há que fazer determinadas indagações prévias. Em primeiro lugar, note-se que o Direito do ambiente é o sector normativo que se ocupa da prevenção, da manutenção e da reparação dos factores ambientais relativos ao Planeta Terra. A tutela do ambiente é uma realidade recente, prejudicada pela proliferação de regras específicas, sem qualquer preocupação de articulação conjunta[1]; a defesa do Ambiente é feita com recurso a normas oriundas dos mais diversos ramos normativos, como o Direito Constitucional, Administrativo, Penal, ou mesmo Civil (esta tutela faz-se tendo em conta as vantagens que resultem deste regime face a uma perspectiva ambientalista). É de salientar a interdependência entre a vida e o ambiente, pois sem o Direito do ambiente não há futuro algum.

 Constate-se, ainda, que o Direito Privado do Ambiente permite a qualquer particular intervir, por si, em questões ambientais e assegura um papel deveras conformador de atitudes e formador de mentalidades, algo extremamente necessário para uma tutela ambiental eficaz e de futuro, pois a mudança cultural é uma das principais adversidades com que a tutela do Ambiente se depara, podendo o Direito Civil desempenhar um papel auxiliar fundamental nesta matéria. No entanto, as fraquezas estruturais do Direito Privado em material ambiental (como por exemplo, o facto de ser, tradicionalmente, um direito restitutivo e a tutela do ambiente dever ser pautada por uma componente preventiva e salvaguardadora) determinam que este não pode actuar principal ou exclusivamente na tutela do Ambiente. Ainda assim, a necessidade de incrementar o Direito do Ambiente em nada priva as outras áreas normativas; estas não devem ser preteridas ou sair prejudicadas, pois face a uma necessária e urgente defesa dos valores ambientais, é premente dispor de todos os mecanismos jurídicos disponíveis possíveis (ainda assim escassos) para vencer a longa batalha pela defesa do Planeta.

 A responsabilidade civil relaciona-se com a ressarcibilidade de danos sofridos numa alçada jurídica, que serão suportados por outrem. Tradicionalmente alude-se a cinco pressupostos da responsabilidade civil: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal. A responsabilidade objectiva é excepcional, admitida apenas quando os danos provocados forem independentes de culpa do agente. A responsabilidade civil ambiental, tem como fundamento jurídico, o artigo 66º da CRP[2]. Os crescentes problemas ecológicos[3] que, por todo o mundo se têm feito sentir, acompanhados de uma maior consciencialização e preocupação ambiental, fizeram suscitar a questão da responsabilidade civil ambiental.

 O Decreto-Lei n.º 147/2008 de 29 de Julho (doravante LRCA) estabelece o regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais, assentando na Lei de Bases do Ambiente, desenvolvendo a sua dimensão indemnizatória. Note-se que no preâmbulo vêm expressos os Princípios da Prevenção e Reponsabilização: “(…) um regime de responsabilização atributivo de direitos aos particulares constitui um mecanismo economicamente mais eficiente e ambientalmente mais eficaz do que a tradicional abordagem de mera regulação ambiental, comummente designada de comando e controlo (…) os particulares (…) relativamente a um estado de conservação ambiental (…) é preferível dotá-los de direitos indemnizatórios, investindo assim o cidadão na qualidade de verdadeiro zelador do ambiente (…)”. O preâmbulo fixa ainda cinco objectivos a superar: a dispersão dos danos, que desincentiva o lesado de demandar o poluidor, numa análise custo/benefício; a complexidade causal, susceptível de impedir a efectivação da responsabilidade; a latência das causas, que leva ao surgimento do dano muito depois do facto que o originou; a dificuldade técnica de provar que uma causa é apta a produzir um dano e a garantia financeira da capacidade do poluidor para suportar os danos da reparação.

 O sistema de responsabilidade civil previsto na LRAC tem de lamentar a auto-contenção legislativa, que obriga a invocar (ainda que meramente a título subsidiário) o regime geral de responsabilidade civil. O regime de responsabilidade civil por dano ambiental admite várias formas de compensação dos lesados, incluindo, em última análise, a possibilidade de uma indemnização. O capítulo II do regime regula a indemnização de lesões sofridas por determinados indivíduos em concreto (a  relação entre autor do dano e vítima está presente em todos os artigos desta capítulo)[4].

 Saliente-se ainda que uma das maiores dificuldades no que respeita à responsabilidade civil ambiental relaciona-se com a própria indagação do dano ambiental, onde muitas vezes se conjugam diversos factores, quer de carácter natural (como a influência dos ventos na emissão de poluentes, por exemplo) quer de carácter humano, bem como as dificuldades provenientes da dilação temporal entre facto e dano. Estes problemas fazem surgir a questão de se será a responsabilidade civil ambiental um meio adequado de tutela (reintegradora ou reparatória por oposição à tutela preventiva) do ambiente. Ainda assim, a responsabilidade civil não deve ser negada, pois estando ligada à ideia de conservação do ambiente, esta tem uma função ressarcitória, nomeadamente por permitir a reconstituição natural (o que no domínio ambiental apresenta uma particular importância, pois só assim se conseguirá colmatar o dano provocado e restabelecer o equilíbrio). Para além disso, tem igualmente um carácter preventivo pois o agente que potencialmente poderá provocar o dano estará de sobreaviso quanto às consequências das suas acções prejudiciais. Nesta responsabilização está assim também presente o princípio do poluidor-pagador.

 Actualmente, devido a uma multiplicidade de factores (como, nomeadamente, a complexidade da actividade económica) surgem situações potencialmente geradoras de danos que tornam difícil a prova dos pressupostos clássicos da responsabilidade civil subjectiva e, principalmente, a culpa.
Dai o surgimento da responsabilidade objectiva[5], pois se alguém desenvolver uma actividade perigosa para a sociedade e através dessa actuação conseguir obter benefícios é legítimo que seja ele a suportar com os danos que causou mesmo que seja sem culpa (art.483/2 CC e art. 41 LBA[6]).
 Foi neste seguimento que o legislador clarificou quais as actividades consideradas de alto risco para o ambiente (estabelecendo o DL 147/2008 contem listas das actividades consideradas objectivamente perigosas para o ambiente no seu anexo iii).

 Estabelece o art. 7.º da LRAC: “Quem, em virtude do exercício de uma actividade económica enumerada no anexo iii ao presente decreto-lei, que dele faz parte integrante, ofender direitos ou interesses alheios por via da lesão de um qualquer componente ambiental é obrigado a reparar os danos resultantes dessa ofensa, independentemente da existência de culpa ou dolo”.

 O art 7.º da LRCA fixa os termos da responsabilidade objectiva por danos ambientais, no entanto é diferente da responsabilidade objectiva civil, pois dispensa a culpa mas não a ilicitude. O art. 10.º dá à responsabilidade civil ambiental um alcance globalmente supletivo. Assim, infere-se que é necessária uma necessidade de desenvolver um subsistema de responsabilidade civil devidamente adaptado, pois atendendo ao art. 7.º da LRAC, refere-se um exercício de actividade económica (enumerado no anexo III do diploma), algo muito abrangente. Quanto aos “direitos ou interesses alheios”, deve entender-se, nos termos gerais, “interesses protegidos”, que já estavam tutelados no art. 483.º n.º 1 do CC. A única especificidade reside no facto de uma causalidade especificamente ambiental (art. 5.º): a lesão de um qualquer componente ambiental.

 Quanto à ilicitude, por norma surge um problema da colisão de direitos (atente-se ao art. 335.º CC). Releva assim, a concepção de direito do ambiente como um direito fundamental, e as possíveis consequências, no caso concreto, de condutas contraditórias ou colidentes, inconciliáveis ou incompatíveis.

 O art. 7.º da LRAC respeita a danos efectivamente provocados (sejam eles danos ambientais ou ecológicos, ultrapassando-se, assim, a anterior destrinça). Todavia nem sempre é susceptível a reparação natural do dano, originando-se, nessas situações, uma indemnização. Mas note-se:
nem sempre o dano ambiental é susceptível de reparação, casos em que o agente é indeterminado ou o dano em causa tenha chegado a esfera da impossibilidade de ser recomposto, constatando-se, uma vez mais, a indispensabilidade da responsabilidade civil ambiental e de uma possível reparação pecuniária, ou seja, uma compensação em dinheiro.

 Como deve, então, ser imputado o dano ao agente? Surge assim a problemática do nexo de causalidade na responsabilidade civil ambiental, estatuindo o art. 5.º da LRAC:A apreciação da prova do nexo de causalidade assenta num critério de verosimilhança e de probabilidade de o facto danoso ser apto a produzir a lesão verificada, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e considerando, em especial, o grau de risco e de perigo e a normalidade da acção lesiva, a possibilidade de prova científica do percurso causal e o cumprimento, ou não, de deveres de protecção”.

 A causalidade[7] tem a ver com a lesão de componentes ambientais (causalidade ambiental, de base naturalística alargada e isso independentemente de ser previsível pelo agente). A imputação, segundo o art. 7.º funciona mesmo que a conduta não seja, nos moldes comuns, censurável ao agente. A imposição de uma responsabilidade objectiva visa incentivar à prossecução dos valores fundamentais em questão.

 O nexo de causalidade assenta num critério de verosimilhança e de probabilidade, que deve tomar em conta as circunstâncias do caso concreto, o grau de risco e de perigo e a normalidade da acção lesiva, assim como a possibilidade de prova cientifca do percurso causal e o cumprimento, ou não, de deveres de protecção.

 Logo: esta regra de responsabilidade civil ambiental visa adoptar um critério que tem como base um indício de idoneidade do facto à provocação do dano, isto é, da possibilidade de aumento ou materialização do perigo da conduta do agente ao Ambiente, com base na Ciência e nas regras de experiencia, face ao caso concreto. No entanto, face aos valores em jogo, e visto que a defesa do Ambiente é algo que preocupa e concerne a todos, não teria sido má ideia o legislador estabelecer determinadas presunções quanto à prova do nexo causal. O Ambiente, agredido, diariamente e cada vez mais a um ritmo vertiginoso, assim o exige!





Bibliografia:

- CORDEIRO, António Menezes, “Tratado de Direito Civil Português II - Direito das Obrigações Tomo III”, 2010, Almedina;

- GOMES, Carla Amado e ANTUNES, Tiago,O que há de novo no Direito do Ambiente? : actas das jornadas de Direito do Ambiente”, 2009, AAFDL;

- OLIVEIRA, Ana Perestrelo de, “Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental”, 2007, Almedina

- SILVA, VASCO PEREIRA DA e MIRANDA, João, “Verde cor de direito: Lições de Direito do Ambiente”, 2004, Almedina.



António Almeida
Aluno n.º 18025
Turma: A
Subturma: 7




[1] O Direito do Ambiente, como disciplina normativa, coloca, assim, certos problemas de sistematização.
[2] Note-se os arts. 1346.º a 1348.º do CC onde se determina o dever de abstenção de certas condutas prejudicais no âmbito da poluição.

[3] Que acarretam, consequentemente, alterações ambientais e danos ao nosso Sistema Ecológico, sendo necessário referir que, ao nível das agressões ao ambiente, a preocupação e a necessidade de salvaguardar as gerações futuras e a ideia de desenvolvimento sustentável implicam inevitavelmente a busca por um equilíbrio ambiental.
[4] Quanto à obrigação de indemnização atente-se ao preâmbulo de Decreto-Lei nº 147/2008 que determina que os “(...)operadores -poluidores ficam obrigados a indemnizar os indivíduos lesados(...)”.

[5] Que tem como fundamento a justiça distributiva.

[6] São necessários três pressupostos fundamentais da responsabilidade objectiva: é necessário que o agente cause danos significativos ao ambiente, se verifique uma acção especialmente perigosa para o ambiente e tem que ocorrer um nexo de causalidade específico entre os danos e a acção praticada pelo agente.
[7] Saliente-se as Teorias da causalidade adequada (só pode haver imputação do dano ao agente quando o facto, para além de ser em concreto conditio sine qua non do dano, seja, em abstracto, adequado a produzi-lo; assim, o facto tem não só de ser imprescindível para a produção do dano, mas, para além disso, tem de, segundo um juízo de probabilidade, ser idóneo a produzir o dano) e da conexão do risco (a imputação do dano ambiental ao agente ocorreria quando a conduta deste levasse à criação ou ao aumento de um risco não permitido pela fattispecie legal, sendo o resultado ou evento danoso materialização ou concretização desse risco; assim, a criação ou aumento do risco, só daria lugar a responsabilidade civil se a conduta do agente fosse susceptível de provocar danos nos bens jurídicos tutelados pelas normas jurídicas em causa).

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Instrumentos de Mercado


Instrumentos do Direito do Ambiente

Instrumentos de Mercado:

Proteger o ambiente é uma tarefa árdua e cara, significa gerir recursos escassos e promover a sua qualidade regenerativa.

É necessário aliciar consumidores e empresas para as vantagens de proteger o ambiente, associando-os à implementação da política ambiental.

É esta dimensão de essencial colaboração que explica a inserção de um ponto dedicado a instrumentos de mercado no conjunto de ferramentas de protecção do ambiente. Tanto de um ponto de vista económico como psicológico, a participação entre entidades públicas e privadas a que apela o artigo 66º/2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) é fundamental à consecução dos objectivos de uma política eficaz de protecção do ambiente[1]. 

A introdução de instrumentos de mercado enfrenta alguns obstáculo éticos (mercantilização de grandezas de fruição colectiva), jurídicos (fungibilização de componentes ambientais) e também comerciais (proteccionismo verde). Apesar de tudo isto, parece hoje constituir uma inevitabilidade em face da falência dos modelos tradicionais.

O resultado mais claro da Cimeira Rio + 20 é a fórmula conhecida como Economia Verde, que surge como o braço armado do volátil e mesmo ambíguo conceito de “desenvolvimento sustentável”.

Analisemos o caso da Coreia do Sul, que adoptou uma estratégia nacional de crescimento verde para o quinquénio 2009-2013, no qual se prevê a afectação de 2% do PIB a investimento em geração de energia a partir de fontes renováveis, em estruturas ecoeficientes, em tecnologias limpas e no tratamento e abastecimento público de água. Ao mesmo tempo, e como forma de divulgação desta nova filosofia de crescimento, o governo sulcoreano constitui o Global Green Growth Institute (GGGI) [2], que tem como objectivo o apoio de países em desenvolvimento na adopção destas novas estratégias. 

Estas técnicas de incentivo à adopção de métodos de funcionamento que se revelem ecologicamente menos agressivos e desgastantes funcionam como a cenoura, o prémio aos empresários que mais invistam em tecnologias de ponta e assim obtenham dividendos no mercado. De qualquer maneira, o Estado não pode nunca abdicar do cacete, das medidas de controlo, mesmo que de fim de linha, como as sanções contraordenacionais a quem não cumpre os mínimos [3].

O rótulo ecológico é considerado um importante método de sensibilização ambiental, ele tenta cativar os consumidores para comportamentos que sejam inovadores e comunitariamente relevantes. Trata-se de uma etiquetagem funcionalizada à sedimentação de atitudes “ambientalmente amigas”, que mais do que informar o consumidor das características do produto com vista à sua protecção individual e a curto prazo, antes intenta, “no longo prazo”, criar uma consciência colectiva dos problemas ligados ao ambiente e enraizando a responsabilização dos consumidores face à necessidade de agir em conjunto para manter uma qualidade de vida globalmente razoável. O “risco de consumo” do produto para o consumidor transforma-se em “risco de sociedade”, perdendo assim a sua natureza individual. O “risco ecológico” passa então a ser um um factor de comportamento determinante[4].

A política de ambiente traduz uma revolução demasiado grande dos hábitos de vida e de lucro alimentados por dois séculos de capitalismo para poder entranhar-se sem instrumentos de mercado, embora sem nunca abdicar do controlo preventivo ou repressivo exercido pelo estado.  

O ambiente enquanto grandeza  de fruição colectiva, é uma responsabilidade de todos, desde o grande industrial que transacciona títulos de emissão de CO num mercado especulativo até ao cidadão anónimo que entrega resíduos em troca de créditos para utilização nos transportes públicos[5].

Mas o ambiente é também bem público, cuja tarefa de preservação e promoção é simultaneamente missão das entidades locais, regionais, estatuais e estatais, razão pela qual estas não se podem demitir de impor e fazer cumprir normas de gestão racional dos componentes ambientais naturais.

Os instrumentos de Mercado dividem-se em obrigatórios e voluntários.

Dentro dos instrumentos obrigatórios, o mercado de títulos de emissão de gases com efeito de estufa é o exemplo paradigmático.

O CELE (comércio europeu de licenças de emissão) tem na sua base a directiva 2004/101/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Outubro e o DL 233/2004, de 14 de Dezembro, que instituiu em Portugal o regime jurídico de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa, na redacção dada pelo DL  72/2006, de 24 de Março.

Trata-se de um mercado de títulos (administrativos e simultaneamente mobiliários) que são atribuídos a determinadas instalações (as que emitem os gases que fazem parte do pacote de seis descritos no Anexo), os quais as investem anualmente no direito de emitir as toneladas de gases com efeito de estufa neles representados (cada título equivale a uma tonelada). Caso emitam acima desse valor, deverão ir ao mercado comprar títulos para cobrir o excesso, se pelo contrário,  caso emitam abaixo desse valor, ficarão com créditos que poderão vender em bolsa, em preço a determinar com base nas leis da oferta e da procura.

A vinculação da União Europeia ao cumprimento das metas de Quioto (obrigando-se a aumentar a fasquia da redução para 8% em relação aos níveis    de emissões de 1990, quando Quioto apenas impõe 5%), torna este mercado obrigatório.

Foi Tiago Antunes quem disse: “o CELE prossegue, simultaneamente, um objectivo ambiental e um objectivo económico. O objectivo ambiental é alcançado por via da estipulação, a priori, do tecto máximo de poluição que pode ser globalmente emitida. O objectivo económico é obtido por via de livre circulação das licenças de emissão, o que, individualmente, permite aos agentes económicos negociar entre si com vista a maximizar os respectivos proveitos e, globalmente, permite atenuar os custos do combate à poluição[6].

Um outro instrumento obrigatório é o certificado de eficiência energética dos edifícios. Neste momento  constitui apenas um factor de valorização dos imóveis, pois garante uma optimização das fontes de energia que aí são utilizadas.

Quando o mercado de “certificados brancos” for implementado, os detentores de imóveis com melhores desempenhos energéticos terão créditos para vender a operadores com piores performances, numa lógica em tudo similar à do mercado de emissões de gases com efeito de estufa.

Passemos agora aos instrumentos  voluntários.
A promoção dos valores ambientais está na moda e as empresas podem aproveitar essa tendência de modernidade do consumidor como instrumento de marketing da sua marca e de valorização dos seus produtos. É esta, fundamentalmente, a explicação para a adesão a mecanismos voluntários.

Como exemplos destes mecanismos temos:

O rótulo ecológico europeu, cujo regime consta actualmente do Regulamento (CE) 66/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2009, de acordo com os critérios e metodologia descritos no seu anexo I.

Aplica-se a bens e serviços distribuídos, consumidos ou utilizados no espaço económico europeu  (logo, aos 27 Estados-membros e também à Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suiça), salvo medicamentos humanos e veterinários, ou a quaisquer dispositivos médicos (artigo 2).

O rótulo reveste as vantagens da recognoscibilidade (único em toda a UE), da selectividade (a sua atribuição obedece a critérios e metodologias bem definidos), da transparência (as condições de atribuição em concreto para cada grupo de produtos ou serviços são decididas por um Comité do Rótulo Ecológico, órgão independente e de composição alargada (artigo 5/2 do Regulamento). Em Portugal, o rótulo é atribuído pela Direcção-Geral das Actividade Económicas.

Os sistemas de ecogestão e auditoria, regime plasmado no Regulamento (CE) 1221/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro, relativo à participação voluntária de organizações num sistema comunitário de ecogestão e auditoria (EMAS = Eco-Management and Audit Scheme), visam “promover a melhoria contínua do desempenho ambiental das organizações mediante o estabelecimento e a implementação pelas mesmas de sistemas de gestão ambiental, a avaliação sistemática, objectiva e periódica do desempenho de tais sistemas, a comunicação de informações sobre o desempenho ambiental e um diálogo aberto com o público e com outras partes interessadas, bem como a participação activa do pessoal das organizações e a sua formação adequada” (artigo 1º e 2º do Regulamento).

Três outras realidades merecem referência pela sua interligação à política ambiental, são elas o mercado de resíduos, o mercado de licenças e concessões e de cedências temporárias de títulos de utilização do domínio hídrico e o mercado de créditos de biodiversidade.


Bibliografia:

AMADO GOMES, Carla, Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2012, pp. 163 segs.

PEREIRA DA SILVA, Vasco, Breve nota sobre o direito sancionatório do ambiente, Direito sancionatório das autoridades reguladoras, Coimbra, 2009, pp. 271 segs.



[1]  GOLLA, Marcella, Il marchio di qualità come strumento di tutela ambientale, Rivista Italiana di Diritto Pubblico Comunitario, 1994/95, pp. 895 segs
[2] http://www.gggi.org/.
[3] FIGUEIREDO DIAS, José Eduardo, Que estratégia para o direito ambiental norte-americano do século XXI: o “cacete” ou a “cenoura”?, BFDUC, 2001, pp. 291 segs.
[4] MANIET, Françoise, Label écologique: ange ou démon?, Revue Européenne de la consommation, 1991, pp. 191 segs.
[5] Designer brasileiro propõe trocar lixo por créditos para utilizar nos transportes públicos – http://greensavers.sapo.pt/2012/08/15/designer-brasileiro-propoe-trocar-lixo-por-creditos-para-utilizar-nos-transportes-públicos/ .
[6] ANTUNES, Tiago, inserido no texto Direito Administrativo do Ambiente (Paulo Otero e Pedro Gonçalves), Coimbra, 2009, pp. 159 segs.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Entre Discricionariedade, Técnica e Incertezas da Linguagem: algumas notas sobre a utilização normativa de conceitos técnicos


I. O presente texto destina-se não a escalpelizar a velha questão da discricionariedade técnica e todos os problemas inerentes e exaustivamente abordados pela doutrina – nem tal seria possível nesta sede - mas sim a reposicionar o tema à luz de algumas considerações tidas como adequadas para esse efeito. Da mesma forma, não é um estudo de direito positivo sobre as manifestações legais do fenómeno, nem das orientações jurisprudenciais assumidas pelos nossos tribunais. Ao invés, e à semelhança de um pintor que instrui o seu modelo a alterar a pose, ou que pega na tela e se muda para outro canto da sala, o que se pretende é uma nova perspectiva sobre o objecto, um novo ângulo sobre a “coisa” - pois, por vezes, mais útil e esclarecedor do que encontrar sucessivas respostas é fazer a pergunta de outra forma. A relevância da problemática para o Direito do Ambiente é toda: porque a protecção efectiva dos bens jurídicos ambientais depende dos conhecimentos e métodos de diversas ciências[1] o ramo jurídico ambiental vai socorrer-se deles e da Técnica, e é na fronteira entre esta e o espaço jurídico que se situam as coordenadas do problema. Com este objectivo em vista sugere-se um percurso que se divide essencialmente em duas partes: em primeiro lugar uma visita ao domínio da discricionariedade administrativa, em busca de um conceito útil da mesma que permita posteriormente entrar na segunda etapa e analisar a “discricionariedade técnica” e a relação, se é que se estabelece alguma, entre as duas.

II. A primeira questão a colocar é então saber o que entender por discricionariedade administrativa. Debruçando-se sobre a problemática, a doutrina portuguesa explicou-a como um “espaço de liberdade da actuação administrativa conferido por lei[2]” ou como “modo de realização do direito no caso concreto mediante escolhas, que sendo da responsabilidade da Administração, não são livres[3]”. Antes de ensaiar uma resposta, contudo, convém salientar que o que se pretende com ela é um conjunto de notas distintivas que sejam simultaneamente precisas para exprimir sinteticamente o fenómeno e úteis na contraposição posterior à discricionariedade técnica. Assim, será possível descrevê-lo da seguinte forma[4]: i) a discricionariedade administrativa é um resultado normativo – é sempre consequência de uma norma de legalidade administrativa que a habilita; ii) esse resultado normativo refere-se a uma escolha entre um universo de alternativas possível; iii) o que significa que o órgão competente pode/deve conformar o conteúdo do acto a praticar, o que redunda num exercício da função administrativa não vinculado. Por outras palavras: uma norma atribui competência a um órgão para praticar ou não um acto (discricionariedade de decisão ou de acção), escolher uma de entre várias condutas possíveis (discricionariedade de escolha), ou mesmo configurar, dentro de limites, essa conduta e os seus efeitos (discricionariedade criativa)[5]. As formas através das quais estes espaços de conformação jurídica são atribuídos podem ser divididas em dois grandes tipos: I) através de previsão expressa das alternativas possíveis na norma e independentes do seu enunciado linguístico; II) mediante o uso da própria linguagem, isto é, de conceitos cujo significado se apresenta incerto, como veículos de verdadeiras situações de escolha conferidas pelo legislador[6]. Esta atribuição de competências discricionárias radica nos princípios da legalidade e da separação de poderes – isto porque é normativamente habilitada[7], observando as exigências dos subprincípios da reserva de lei e da preferência de lei[8]; e porque se justifica através da separação de poderes como comando de optimização na atribuição e exercício de funções estaduais ao cometer essas tarefas a determinados órgãos segundo critérios de racionalidade, proximidade e legitimidade. Tais considerações impõem uma conclusão que se deve tomar como referência nesta problemática: as opções administrativas em espaços discricionários não são sindicáveis pelos tribunais. Se os tribunais, nos termos do artigo 202.º CRP, exercem a função jurisdicional, e se esta tem como objectivo a aplicação de normas jurídicas para solucionar litígios ou “questões de direito”[9], isso significa que os âmbitos discricionários exercidos com respeito pelos limites e vinculações da norma habilitante – e os juízos conducentes a essas escolhas – se encontram fora do raio de acção jurisdicional:[10].

III. Cumpre agora averiguar o que se deve entender por discricionariedade técnica e se é ou não uma verdadeira modalidade de discricionariedade administrativa. Centrando a atenção na locução “técnica” é possível dizer que esta traduz um conjunto de regras ou normas a seguir numa determinada ciência ou arte. Acoplando a “discricionariedade” a ideia que se retêm é uma de “espaço de livre aplicação de normas científicas ou técnicas[11]”. Mas a esta expressão são reconduzidas muitas vezes significados distintos, ao que por isso cabe fazer um pequeno excurso histórico. A expressão foi pela primeira vez usada por Bernatzik com o intuito de designar decisões que, não sendo à partida discricionárias, todavia deveriam ser subtraídas do controlo de legalidade por parte dos tribunais devido à sua complexidade técnica. No nosso país rapidamente se conotou a discricionariedade técnica com a discricionariedade imprópria – ou seja com uma actuação que apesar de vinculada deveria ser retirada da sindicância dos tribunais[12] - “confusão” esta que iria ser denunciada por Giannini. Já se está em condições de explicar o fenómeno: no fundo seriam casos em que uma norma, ou por remissão para normas científicas ou por utilização de parâmetros e conceitos técnicos, introduzia no seu conteúdo dados e informações extrajurídicos que os tribunais consideraram estar fora do seu controlo jurisdicional[13]. Boa parte da doutrina portuguesa afirmou esta ser uma falsa questão[14] pois não haveria nestas situações qualquer âmbito de escolha normativamente atribuído – os conceitos exteriores à ciência jurídica seriam concretizáveis de acordo com outro tipo de conhecimentos a que o tribunal teria acesso mediante o recurso a peritos ou especialistas. O que significa que não opera a teleologia da discricionariedade administrativa porque não há qualquer discricionariedade para começar[15] – e se não existem esses espaços de conformação jurídica então a aplicação dessas normas e conceitos não pode escapar ao controlo jurisdicional - não há qualquer decisão de mérito normativamente conferida e a recusa por parte dos tribunais de julgar uma destas questões resultaria numa verdadeira denegação de justiça.

IV. Dir-se-ia, de acordo com esta corrente doutrinária, que toda esta confusão se deve a um engano no nome ao apelidar de discricionariedade algo que de discricionário em si nada tem e o que de facto se pretendeu foi a subtracção do controlo por parte do juiz nestas situações. Todavia, tal não significa que sempre que se está perante normas que utilizam parâmetros científicos ou conceitos técnicos se deva automaticamente concluir pela ausência de espaços de escolha e conformação jurídica: as verdadeiras situações de discricionariedade não deixam de o ser por assumirem tais características[16]. O verdadeiro problema reside, pois, na identificação de âmbitos discricionários em normas portadoras destes “conceitos externos”[17] – nomeadamente no domínio da ciência e da técnica. Nas situações acima referidas de referência expressa a diversas alternativas de actuação, ou tipo enumerado como I) – por exemplo na norma “na situação x o órgão y deve a) ou b)” em que a) e b) são condutas distintas que envolvem a utilização de conceitos técnicos – as dificuldades serão menores dado que na norma é possível delimitar claramente a atribuição de discricionariedade da utilização dos conceitos técnicos: uma vez apurado o seu significado torna-se claro, quer para o órgão quer para o juiz, quais as actuações permitidas pela norma. Maiores problemas advirão nos casos de tipo II) de (potencial) atribuição de discricionariedade, em que se torna necessário apurar se as incertezas linguísticas[18] se destinam a conferir discricionariedade, se são meramente imputáveis à “tecnicidade” impregnada na norma ou ambas. Essa aferição é ainda mais decisiva se se considerar que os modos de determinação da significância devem ser distintos consoante a razão dessa incerteza[19]. Ao que se junta ainda mais uma interrogação: assim sendo qual será o método de definição do sentido global dessa norma? Quais as zonas linguísticas cinzentas cujo significado se deve determinar primeiro[20]? Estas questões são levantadas sem pretensão de oferecer soluções mas com o sentido de alertar para a sua importância e para a sua reflexão.



[1] O próprio surgimento da “questão ambiental” deixa entrever a sua multidisciplinariedade não apenas jurídica mas também científica. Sobre estes temas vide VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina,  2002, pp. 17-19 e CARLA AMADO GOMES, Introdução ao Direio do Ambiente, AAFDL, 2012, pp. 15 e ss. e também DINAH SHELTON/ALEXANDRE KISS, Judicial Handbook on Environmental Law, UNEP, 2005, pp. 3-6.
[2] MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, I, 3.ª ed., Dom Quixote, 2008, pág. 183. Adoptando também esta noção ANTÓNIO CADILHA, Os Poderes de Pronúncia Jurisdicionais na Acção de Condenação à Prática de Acto Devido e os Limites Funcionais da Justiça Administrativa in Estudos em Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, Vol. 2, Coimbra, 2010, pág. 174.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Almedina, 2009.
[4] Nesta matéria é seguido de perto o entendimento de DAVID DUARTE, A Discricionariedade Administrativa e a Competência (Sobre a Função Administrativa) do Provedor de Justiça in O Provedor de Justiça – Novos Estudos, Lisboa, 2008, pp. 35 e 36, entendimento que é aprofundado em A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa: A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, Almedina, 2006, pp. 393 e ss.
[5] Esta classificação, útil para efeitos expositivos e pedagógicos das diferentes manifestações de discricionariedade, foi proposta por SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, 1987, pp. 314 e ss. e adoptada por MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pág. 187.
[6] DAVID DUARTE, A Discricionariedade…, pp. 39 e ss. apresenta estas duas categorias como globais, nas quais se incluiriam outras espécies de discricionariedade pretensamente autónomas como a liberdade avaliativa e a discricionariedade probatória.
[7] Atribuir discricionariedade não é, ao contrário do que já se pensou, autorizar um órgão e a actuar de qualquer forma: pelo contrário habilitar significa delimitar, conferir escolhas implica a sua densificação e o recorte claro do espaço operativo de discricionariedade – assim SÉRVULO CORREIA, ob. cit., pág. 313. A norma habilitante atribui um campo de actuação definido, sendo que a o desrespeito pelos seus limites implica violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (artigo 3.º/2 CRP). Assim será porque estando no domínio da função administrativa esta, como função secundária (sobre o tema MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pp. 38 e ss.), não tem como tarefa definir os princípios e opções de regulação da vida colectiva – tarefa que cabe às funções política e legislativa como funções primárias – mas cometer-lhe-á a prossecução desses princípios e a satisfação das necessidades colectivas previamente escolhidas. Tal não significa, pelo contrário, que a actividade administrativa seja essencialmente executória: precisamente a sua proximidade junto das realidades e uma melhor aptidão nos juízos que os casos concretos reclamam justifica essa “acção criativa”. Num argumento de ordem jurídico-ontológica dir-se-ia também que a concessão de poderes discricionários (ou de outra natureza) ilimitados redundaria numa não-concessão: atribuir competência para “tudo fazer” é o mesmo que não atribuir qualquer competência.
[8] MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pág. 163 e ss.
[9] Na lição ainda actual de AFONSO QUEIRÓ, A Função Administrativa in Revista de Direito e de Estudos Sociais, pp. 30 e ss. colhida por MARCELO REBELO DE SOUSA na ob. cit., pág. 40.
[10] No mesmo sentido TIAGO ANTUNES, O Ambiene entre Direito e Técnica, AAFDL, 2003, pp. 25-26.
[11] Ou por outras palavras um “juízo efectuado de acordo com cânones científicos e técnicos” – LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, O Procedimento Administrativo de Avaliação de Impacto Ambiental: para uma Tutela Preventiva do Ambiente, Almedina, 1998, pág. 234.
[12] TIAGO ANTUNES, ob. cit., pág. 23.
[13] Para uma análise da jurisprudência portuguesa sobre o tema vide MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, A Discricionariedade Técnica na Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, 1992, passim.
[14] CARLA AMADO GOMES, Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de Deveres de Protecção do Ambiente, 2007, pp. 500 e ss., LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, ob. cit., pp. 235 e ss.
[15] CARLA AMADO GOMES, Risco…, pág. 501-502.
[16] TIAGO ANTUNES, ob. cit. , pp. 29 e ss. que afirma “Uma decisão técnica pode ser ou não discricionária. Há juízos técnicos de resultado unívoco e indiscutível. Mas outros há em que não existe uma única solução verdadeira, mas antes várias possíveis. (…)Ou seja, a utilização da Técnica não é, ao contrário do que muitos afirmam, sinónimo de vinculação.”
[17] No sentido de exteriores a uma compreensão média por parte de um intérprete-aplicador. A questão tem assim uma dimensão maior apesar da sua acuidade nos casos de recurso aos conceitos técnicos e científicos – no fundo envolve toda a problemática da determinabilidade do significado de conceitos que pertencem a domínios específicos de linguagem própria.
[18] Incertezas que no campo da semântica se podem dividir em vagueza (indefinição das fronteiras denotativas de uma palavra), polissemia (diversos significados referentes ao mesmo vocábulo) e textura aberta (propriedade inerente a qualquer palavra relativa à existência de uma zona de imprevisibilidade do seu significado, quer devido à sua evolução do mesmo quer devido à evolução da realidade) – DAVID DUARTE, A Discricionariedade…pp. 48-53.
[19] Porque a determinação das incertezas conferidoras de discricionariedade e a determinação dos conceitos de natureza técnica logicamente terá de ser distinta – no mínimo porque no segundo caso intervêm os métodos e cânones da ciência em questão.
[20] Nesta sede parecem ser úteis as considerações relativas à hermenêutica como “compreensão do compreender” – sobre o tema vide, entre outros, KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 5.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.