sexta-feira, 5 de abril de 2013

Entre Discricionariedade, Técnica e Incertezas da Linguagem: algumas notas sobre a utilização normativa de conceitos técnicos


I. O presente texto destina-se não a escalpelizar a velha questão da discricionariedade técnica e todos os problemas inerentes e exaustivamente abordados pela doutrina – nem tal seria possível nesta sede - mas sim a reposicionar o tema à luz de algumas considerações tidas como adequadas para esse efeito. Da mesma forma, não é um estudo de direito positivo sobre as manifestações legais do fenómeno, nem das orientações jurisprudenciais assumidas pelos nossos tribunais. Ao invés, e à semelhança de um pintor que instrui o seu modelo a alterar a pose, ou que pega na tela e se muda para outro canto da sala, o que se pretende é uma nova perspectiva sobre o objecto, um novo ângulo sobre a “coisa” - pois, por vezes, mais útil e esclarecedor do que encontrar sucessivas respostas é fazer a pergunta de outra forma. A relevância da problemática para o Direito do Ambiente é toda: porque a protecção efectiva dos bens jurídicos ambientais depende dos conhecimentos e métodos de diversas ciências[1] o ramo jurídico ambiental vai socorrer-se deles e da Técnica, e é na fronteira entre esta e o espaço jurídico que se situam as coordenadas do problema. Com este objectivo em vista sugere-se um percurso que se divide essencialmente em duas partes: em primeiro lugar uma visita ao domínio da discricionariedade administrativa, em busca de um conceito útil da mesma que permita posteriormente entrar na segunda etapa e analisar a “discricionariedade técnica” e a relação, se é que se estabelece alguma, entre as duas.

II. A primeira questão a colocar é então saber o que entender por discricionariedade administrativa. Debruçando-se sobre a problemática, a doutrina portuguesa explicou-a como um “espaço de liberdade da actuação administrativa conferido por lei[2]” ou como “modo de realização do direito no caso concreto mediante escolhas, que sendo da responsabilidade da Administração, não são livres[3]”. Antes de ensaiar uma resposta, contudo, convém salientar que o que se pretende com ela é um conjunto de notas distintivas que sejam simultaneamente precisas para exprimir sinteticamente o fenómeno e úteis na contraposição posterior à discricionariedade técnica. Assim, será possível descrevê-lo da seguinte forma[4]: i) a discricionariedade administrativa é um resultado normativo – é sempre consequência de uma norma de legalidade administrativa que a habilita; ii) esse resultado normativo refere-se a uma escolha entre um universo de alternativas possível; iii) o que significa que o órgão competente pode/deve conformar o conteúdo do acto a praticar, o que redunda num exercício da função administrativa não vinculado. Por outras palavras: uma norma atribui competência a um órgão para praticar ou não um acto (discricionariedade de decisão ou de acção), escolher uma de entre várias condutas possíveis (discricionariedade de escolha), ou mesmo configurar, dentro de limites, essa conduta e os seus efeitos (discricionariedade criativa)[5]. As formas através das quais estes espaços de conformação jurídica são atribuídos podem ser divididas em dois grandes tipos: I) através de previsão expressa das alternativas possíveis na norma e independentes do seu enunciado linguístico; II) mediante o uso da própria linguagem, isto é, de conceitos cujo significado se apresenta incerto, como veículos de verdadeiras situações de escolha conferidas pelo legislador[6]. Esta atribuição de competências discricionárias radica nos princípios da legalidade e da separação de poderes – isto porque é normativamente habilitada[7], observando as exigências dos subprincípios da reserva de lei e da preferência de lei[8]; e porque se justifica através da separação de poderes como comando de optimização na atribuição e exercício de funções estaduais ao cometer essas tarefas a determinados órgãos segundo critérios de racionalidade, proximidade e legitimidade. Tais considerações impõem uma conclusão que se deve tomar como referência nesta problemática: as opções administrativas em espaços discricionários não são sindicáveis pelos tribunais. Se os tribunais, nos termos do artigo 202.º CRP, exercem a função jurisdicional, e se esta tem como objectivo a aplicação de normas jurídicas para solucionar litígios ou “questões de direito”[9], isso significa que os âmbitos discricionários exercidos com respeito pelos limites e vinculações da norma habilitante – e os juízos conducentes a essas escolhas – se encontram fora do raio de acção jurisdicional:[10].

III. Cumpre agora averiguar o que se deve entender por discricionariedade técnica e se é ou não uma verdadeira modalidade de discricionariedade administrativa. Centrando a atenção na locução “técnica” é possível dizer que esta traduz um conjunto de regras ou normas a seguir numa determinada ciência ou arte. Acoplando a “discricionariedade” a ideia que se retêm é uma de “espaço de livre aplicação de normas científicas ou técnicas[11]”. Mas a esta expressão são reconduzidas muitas vezes significados distintos, ao que por isso cabe fazer um pequeno excurso histórico. A expressão foi pela primeira vez usada por Bernatzik com o intuito de designar decisões que, não sendo à partida discricionárias, todavia deveriam ser subtraídas do controlo de legalidade por parte dos tribunais devido à sua complexidade técnica. No nosso país rapidamente se conotou a discricionariedade técnica com a discricionariedade imprópria – ou seja com uma actuação que apesar de vinculada deveria ser retirada da sindicância dos tribunais[12] - “confusão” esta que iria ser denunciada por Giannini. Já se está em condições de explicar o fenómeno: no fundo seriam casos em que uma norma, ou por remissão para normas científicas ou por utilização de parâmetros e conceitos técnicos, introduzia no seu conteúdo dados e informações extrajurídicos que os tribunais consideraram estar fora do seu controlo jurisdicional[13]. Boa parte da doutrina portuguesa afirmou esta ser uma falsa questão[14] pois não haveria nestas situações qualquer âmbito de escolha normativamente atribuído – os conceitos exteriores à ciência jurídica seriam concretizáveis de acordo com outro tipo de conhecimentos a que o tribunal teria acesso mediante o recurso a peritos ou especialistas. O que significa que não opera a teleologia da discricionariedade administrativa porque não há qualquer discricionariedade para começar[15] – e se não existem esses espaços de conformação jurídica então a aplicação dessas normas e conceitos não pode escapar ao controlo jurisdicional - não há qualquer decisão de mérito normativamente conferida e a recusa por parte dos tribunais de julgar uma destas questões resultaria numa verdadeira denegação de justiça.

IV. Dir-se-ia, de acordo com esta corrente doutrinária, que toda esta confusão se deve a um engano no nome ao apelidar de discricionariedade algo que de discricionário em si nada tem e o que de facto se pretendeu foi a subtracção do controlo por parte do juiz nestas situações. Todavia, tal não significa que sempre que se está perante normas que utilizam parâmetros científicos ou conceitos técnicos se deva automaticamente concluir pela ausência de espaços de escolha e conformação jurídica: as verdadeiras situações de discricionariedade não deixam de o ser por assumirem tais características[16]. O verdadeiro problema reside, pois, na identificação de âmbitos discricionários em normas portadoras destes “conceitos externos”[17] – nomeadamente no domínio da ciência e da técnica. Nas situações acima referidas de referência expressa a diversas alternativas de actuação, ou tipo enumerado como I) – por exemplo na norma “na situação x o órgão y deve a) ou b)” em que a) e b) são condutas distintas que envolvem a utilização de conceitos técnicos – as dificuldades serão menores dado que na norma é possível delimitar claramente a atribuição de discricionariedade da utilização dos conceitos técnicos: uma vez apurado o seu significado torna-se claro, quer para o órgão quer para o juiz, quais as actuações permitidas pela norma. Maiores problemas advirão nos casos de tipo II) de (potencial) atribuição de discricionariedade, em que se torna necessário apurar se as incertezas linguísticas[18] se destinam a conferir discricionariedade, se são meramente imputáveis à “tecnicidade” impregnada na norma ou ambas. Essa aferição é ainda mais decisiva se se considerar que os modos de determinação da significância devem ser distintos consoante a razão dessa incerteza[19]. Ao que se junta ainda mais uma interrogação: assim sendo qual será o método de definição do sentido global dessa norma? Quais as zonas linguísticas cinzentas cujo significado se deve determinar primeiro[20]? Estas questões são levantadas sem pretensão de oferecer soluções mas com o sentido de alertar para a sua importância e para a sua reflexão.



[1] O próprio surgimento da “questão ambiental” deixa entrever a sua multidisciplinariedade não apenas jurídica mas também científica. Sobre estes temas vide VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina,  2002, pp. 17-19 e CARLA AMADO GOMES, Introdução ao Direio do Ambiente, AAFDL, 2012, pp. 15 e ss. e também DINAH SHELTON/ALEXANDRE KISS, Judicial Handbook on Environmental Law, UNEP, 2005, pp. 3-6.
[2] MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, I, 3.ª ed., Dom Quixote, 2008, pág. 183. Adoptando também esta noção ANTÓNIO CADILHA, Os Poderes de Pronúncia Jurisdicionais na Acção de Condenação à Prática de Acto Devido e os Limites Funcionais da Justiça Administrativa in Estudos em Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, Vol. 2, Coimbra, 2010, pág. 174.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Almedina, 2009.
[4] Nesta matéria é seguido de perto o entendimento de DAVID DUARTE, A Discricionariedade Administrativa e a Competência (Sobre a Função Administrativa) do Provedor de Justiça in O Provedor de Justiça – Novos Estudos, Lisboa, 2008, pp. 35 e 36, entendimento que é aprofundado em A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa: A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, Almedina, 2006, pp. 393 e ss.
[5] Esta classificação, útil para efeitos expositivos e pedagógicos das diferentes manifestações de discricionariedade, foi proposta por SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, 1987, pp. 314 e ss. e adoptada por MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pág. 187.
[6] DAVID DUARTE, A Discricionariedade…, pp. 39 e ss. apresenta estas duas categorias como globais, nas quais se incluiriam outras espécies de discricionariedade pretensamente autónomas como a liberdade avaliativa e a discricionariedade probatória.
[7] Atribuir discricionariedade não é, ao contrário do que já se pensou, autorizar um órgão e a actuar de qualquer forma: pelo contrário habilitar significa delimitar, conferir escolhas implica a sua densificação e o recorte claro do espaço operativo de discricionariedade – assim SÉRVULO CORREIA, ob. cit., pág. 313. A norma habilitante atribui um campo de actuação definido, sendo que a o desrespeito pelos seus limites implica violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (artigo 3.º/2 CRP). Assim será porque estando no domínio da função administrativa esta, como função secundária (sobre o tema MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pp. 38 e ss.), não tem como tarefa definir os princípios e opções de regulação da vida colectiva – tarefa que cabe às funções política e legislativa como funções primárias – mas cometer-lhe-á a prossecução desses princípios e a satisfação das necessidades colectivas previamente escolhidas. Tal não significa, pelo contrário, que a actividade administrativa seja essencialmente executória: precisamente a sua proximidade junto das realidades e uma melhor aptidão nos juízos que os casos concretos reclamam justifica essa “acção criativa”. Num argumento de ordem jurídico-ontológica dir-se-ia também que a concessão de poderes discricionários (ou de outra natureza) ilimitados redundaria numa não-concessão: atribuir competência para “tudo fazer” é o mesmo que não atribuir qualquer competência.
[8] MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pág. 163 e ss.
[9] Na lição ainda actual de AFONSO QUEIRÓ, A Função Administrativa in Revista de Direito e de Estudos Sociais, pp. 30 e ss. colhida por MARCELO REBELO DE SOUSA na ob. cit., pág. 40.
[10] No mesmo sentido TIAGO ANTUNES, O Ambiene entre Direito e Técnica, AAFDL, 2003, pp. 25-26.
[11] Ou por outras palavras um “juízo efectuado de acordo com cânones científicos e técnicos” – LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, O Procedimento Administrativo de Avaliação de Impacto Ambiental: para uma Tutela Preventiva do Ambiente, Almedina, 1998, pág. 234.
[12] TIAGO ANTUNES, ob. cit., pág. 23.
[13] Para uma análise da jurisprudência portuguesa sobre o tema vide MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, A Discricionariedade Técnica na Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, 1992, passim.
[14] CARLA AMADO GOMES, Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de Deveres de Protecção do Ambiente, 2007, pp. 500 e ss., LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, ob. cit., pp. 235 e ss.
[15] CARLA AMADO GOMES, Risco…, pág. 501-502.
[16] TIAGO ANTUNES, ob. cit. , pp. 29 e ss. que afirma “Uma decisão técnica pode ser ou não discricionária. Há juízos técnicos de resultado unívoco e indiscutível. Mas outros há em que não existe uma única solução verdadeira, mas antes várias possíveis. (…)Ou seja, a utilização da Técnica não é, ao contrário do que muitos afirmam, sinónimo de vinculação.”
[17] No sentido de exteriores a uma compreensão média por parte de um intérprete-aplicador. A questão tem assim uma dimensão maior apesar da sua acuidade nos casos de recurso aos conceitos técnicos e científicos – no fundo envolve toda a problemática da determinabilidade do significado de conceitos que pertencem a domínios específicos de linguagem própria.
[18] Incertezas que no campo da semântica se podem dividir em vagueza (indefinição das fronteiras denotativas de uma palavra), polissemia (diversos significados referentes ao mesmo vocábulo) e textura aberta (propriedade inerente a qualquer palavra relativa à existência de uma zona de imprevisibilidade do seu significado, quer devido à sua evolução do mesmo quer devido à evolução da realidade) – DAVID DUARTE, A Discricionariedade…pp. 48-53.
[19] Porque a determinação das incertezas conferidoras de discricionariedade e a determinação dos conceitos de natureza técnica logicamente terá de ser distinta – no mínimo porque no segundo caso intervêm os métodos e cânones da ciência em questão.
[20] Nesta sede parecem ser úteis as considerações relativas à hermenêutica como “compreensão do compreender” – sobre o tema vide, entre outros, KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 5.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

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