I. O presente texto destina-se
não a escalpelizar a velha questão da discricionariedade técnica e todos os
problemas inerentes e exaustivamente abordados pela doutrina – nem tal seria
possível nesta sede - mas sim a reposicionar o tema à luz de algumas
considerações tidas como adequadas para esse efeito. Da mesma forma, não é um
estudo de direito positivo sobre as manifestações legais do fenómeno, nem das
orientações jurisprudenciais assumidas pelos nossos tribunais. Ao invés, e à
semelhança de um pintor que instrui o seu modelo a alterar a pose, ou que pega
na tela e se muda para outro canto da sala, o que se pretende é uma nova
perspectiva sobre o objecto, um novo ângulo sobre a “coisa” - pois, por vezes,
mais útil e esclarecedor do que encontrar sucessivas respostas é fazer a
pergunta de outra forma. A relevância da problemática para o Direito do
Ambiente é toda: porque a protecção efectiva dos bens jurídicos ambientais depende
dos conhecimentos e métodos de diversas ciências[1]
o ramo jurídico ambiental vai socorrer-se deles e da Técnica, e é na fronteira
entre esta e o espaço jurídico que se situam as coordenadas do problema. Com
este objectivo em vista sugere-se um percurso que se divide essencialmente em
duas partes: em primeiro lugar uma visita ao domínio da discricionariedade
administrativa, em busca de um conceito útil da mesma que permita posteriormente
entrar na segunda etapa e analisar a “discricionariedade técnica” e a relação,
se é que se estabelece alguma, entre as duas.
II. A primeira questão a
colocar é então saber o que entender por discricionariedade administrativa. Debruçando-se sobre a problemática, a
doutrina portuguesa explicou-a como um “espaço de liberdade da actuação
administrativa conferido por lei[2]”
ou como “modo de realização do direito no caso concreto mediante escolhas, que
sendo da responsabilidade da Administração, não são livres[3]”.
Antes de ensaiar uma resposta, contudo, convém salientar que o que se pretende com
ela é um conjunto de notas distintivas que sejam simultaneamente precisas para
exprimir sinteticamente o fenómeno e úteis na contraposição posterior à
discricionariedade técnica. Assim, será possível descrevê-lo da seguinte forma[4]:
i) a discricionariedade administrativa é um resultado normativo – é sempre
consequência de uma norma de legalidade administrativa que a habilita; ii) esse
resultado normativo refere-se a uma escolha entre um universo de alternativas
possível; iii) o que significa que o órgão competente pode/deve conformar o
conteúdo do acto a praticar, o que redunda num exercício da função
administrativa não vinculado. Por outras palavras: uma norma atribui
competência a um órgão para praticar ou não um acto (discricionariedade de
decisão ou de acção), escolher uma de entre várias condutas possíveis
(discricionariedade de escolha), ou mesmo configurar, dentro de limites, essa
conduta e os seus efeitos (discricionariedade criativa)[5].
As formas através das quais estes espaços de conformação jurídica são atribuídos
podem ser divididas em dois grandes tipos: I) através de previsão expressa das
alternativas possíveis na norma e independentes do seu enunciado linguístico; II)
mediante o uso da própria linguagem, isto é, de conceitos cujo significado se
apresenta incerto, como veículos de verdadeiras situações de escolha conferidas
pelo legislador[6].
Esta atribuição de competências discricionárias radica nos princípios da
legalidade e da separação de poderes – isto porque é normativamente habilitada[7],
observando as exigências dos subprincípios da reserva de lei e da preferência
de lei[8];
e porque se justifica através da separação de poderes como comando de
optimização na atribuição e exercício de funções estaduais ao cometer essas
tarefas a determinados órgãos segundo critérios de racionalidade, proximidade e
legitimidade. Tais considerações impõem uma conclusão que se deve tomar como
referência nesta problemática: as opções administrativas em espaços
discricionários não são sindicáveis pelos tribunais. Se os tribunais, nos
termos do artigo 202.º CRP, exercem a função jurisdicional, e se esta tem como objectivo
a aplicação de normas jurídicas para solucionar litígios ou “questões de
direito”[9],
isso significa que os âmbitos discricionários exercidos com respeito pelos
limites e vinculações da norma habilitante – e os juízos conducentes a essas
escolhas – se encontram fora do raio de acção jurisdicional:[10].
III. Cumpre agora
averiguar o que se deve entender por discricionariedade técnica e se é ou não uma
verdadeira modalidade de discricionariedade administrativa. Centrando a atenção
na locução “técnica” é possível dizer que esta traduz um conjunto de regras ou
normas a seguir numa determinada ciência ou arte. Acoplando a
“discricionariedade” a ideia que se retêm é uma de “espaço de livre aplicação
de normas científicas ou técnicas[11]”.
Mas a esta expressão são reconduzidas muitas vezes significados distintos, ao
que por isso cabe fazer um pequeno excurso histórico. A expressão foi pela
primeira vez usada por Bernatzik com o intuito de designar decisões que, não
sendo à partida discricionárias, todavia deveriam ser subtraídas do controlo de
legalidade por parte dos tribunais devido à sua complexidade técnica. No nosso
país rapidamente se conotou a discricionariedade técnica com a
discricionariedade imprópria – ou seja com uma actuação que apesar de vinculada
deveria ser retirada da sindicância dos tribunais[12]
- “confusão” esta que iria ser denunciada por Giannini. Já se está em condições
de explicar o fenómeno: no fundo seriam casos em que uma norma, ou por remissão
para normas científicas ou por utilização de parâmetros e conceitos técnicos,
introduzia no seu conteúdo dados e informações extrajurídicos que os tribunais
consideraram estar fora do seu controlo jurisdicional[13].
Boa parte da doutrina portuguesa afirmou esta ser uma falsa questão[14]
pois não haveria nestas situações qualquer âmbito de escolha normativamente
atribuído – os conceitos exteriores à ciência jurídica seriam concretizáveis de
acordo com outro tipo de conhecimentos a que o tribunal teria acesso mediante o
recurso a peritos ou especialistas. O que significa que não opera a teleologia da
discricionariedade administrativa porque não há qualquer discricionariedade
para começar[15]
– e se não existem esses espaços de conformação jurídica então a aplicação
dessas normas e conceitos não pode escapar ao controlo jurisdicional - não há
qualquer decisão de mérito normativamente conferida e a recusa por parte dos
tribunais de julgar uma destas questões resultaria numa verdadeira denegação de
justiça.
IV. Dir-se-ia, de acordo
com esta corrente doutrinária, que toda esta confusão se deve a um engano no
nome ao apelidar de discricionariedade algo que de discricionário em si nada
tem e o que de facto se pretendeu foi a subtracção do controlo por parte do
juiz nestas situações. Todavia, tal não significa que sempre que se está
perante normas que utilizam parâmetros científicos ou conceitos técnicos se
deva automaticamente concluir pela ausência de espaços de escolha e conformação
jurídica: as verdadeiras situações de discricionariedade não deixam de o ser
por assumirem tais características[16].
O verdadeiro problema reside, pois, na identificação de âmbitos discricionários
em normas portadoras destes “conceitos externos”[17]
– nomeadamente no domínio da ciência e da técnica. Nas situações acima
referidas de referência expressa a diversas alternativas de actuação, ou tipo
enumerado como I) – por exemplo na norma “na
situação x o órgão y deve a) ou b)” em que a) e b) são condutas
distintas que envolvem a utilização de conceitos técnicos – as dificuldades
serão menores dado que na norma é possível delimitar claramente a atribuição de
discricionariedade da utilização dos conceitos técnicos: uma vez apurado o seu
significado torna-se claro, quer para o órgão quer para o juiz, quais as
actuações permitidas pela norma. Maiores problemas advirão nos casos de tipo
II) de (potencial) atribuição de discricionariedade, em que se torna necessário
apurar se as incertezas linguísticas[18]
se destinam a conferir discricionariedade, se são meramente imputáveis à “tecnicidade”
impregnada na norma ou ambas. Essa aferição é ainda mais decisiva se se
considerar que os modos de determinação da significância devem ser distintos
consoante a razão dessa incerteza[19].
Ao que se junta ainda mais uma interrogação: assim sendo qual será o método de
definição do sentido global dessa norma? Quais as zonas linguísticas cinzentas
cujo significado se deve determinar primeiro[20]? Estas questões são levantadas sem pretensão de oferecer soluções mas com o
sentido de alertar para a sua importância e para a sua reflexão.
[1] O próprio
surgimento da “questão ambiental” deixa entrever a sua multidisciplinariedade
não apenas jurídica mas também científica. Sobre estes temas vide VASCO PEREIRA
DA SILVA, Verde Cor de Direito – Lições
de Direito do Ambiente, Almedina,
2002, pp. 17-19 e CARLA AMADO GOMES, Introdução
ao Direio do Ambiente, AAFDL, 2012, pp. 15 e ss. e também DINAH
SHELTON/ALEXANDRE KISS, Judicial Handbook
on Environmental Law, UNEP, 2005, pp. 3-6.
[2] MARCELO REBELO DE
SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito
Administrativo Geral, I, 3.ª ed., Dom Quixote, 2008, pág. 183. Adoptando
também esta noção ANTÓNIO CADILHA, Os Poderes
de Pronúncia Jurisdicionais na Acção de Condenação à Prática de Acto Devido e
os Limites Funcionais da Justiça Administrativa in Estudos em Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, Vol. 2, Coimbra,
2010, pág. 174.
[3] VASCO PEREIRA DA
SILVA, O Contencioso Administrativo no
Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Almedina, 2009.
[4] Nesta matéria é
seguido de perto o entendimento de DAVID DUARTE, A Discricionariedade Administrativa e a Competência (Sobre a Função Administrativa)
do Provedor de Justiça in O Provedor
de Justiça – Novos Estudos, Lisboa, 2008, pp. 35 e 36, entendimento que é
aprofundado em A Norma de Legalidade
Procedimental Administrativa: A Teoria da Norma e a Criação de Normas de
Decisão na Discricionariedade Instrutória, Almedina, 2006, pp. 393 e ss.
[5] Esta classificação,
útil para efeitos expositivos e pedagógicos das diferentes manifestações de
discricionariedade, foi proposta por SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina,
1987, pp. 314 e ss. e adoptada por MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS,
ob. cit., pág. 187.
[6] DAVID DUARTE, A Discricionariedade…, pp. 39 e ss.
apresenta estas duas categorias como globais, nas quais se incluiriam outras
espécies de discricionariedade pretensamente autónomas como a liberdade
avaliativa e a discricionariedade probatória.
[7] Atribuir
discricionariedade não é, ao contrário do que já se pensou, autorizar um órgão
e a actuar de qualquer forma: pelo contrário habilitar significa delimitar,
conferir escolhas implica a sua densificação e o recorte claro do espaço
operativo de discricionariedade – assim SÉRVULO CORREIA, ob. cit., pág. 313. A
norma habilitante atribui um campo de actuação definido, sendo que a o
desrespeito pelos seus limites implica violação do princípio da legalidade
constitucionalmente consagrado (artigo 3.º/2 CRP). Assim será porque estando no
domínio da função administrativa esta, como função secundária (sobre o tema
MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pp. 38 e ss.), não tem
como tarefa definir os princípios e opções de regulação da vida colectiva –
tarefa que cabe às funções política e legislativa como funções primárias – mas cometer-lhe-á
a prossecução desses princípios e a satisfação das necessidades colectivas
previamente escolhidas. Tal não significa, pelo contrário, que a actividade
administrativa seja essencialmente executória: precisamente a sua proximidade junto
das realidades e uma melhor aptidão nos juízos que os casos concretos reclamam
justifica essa “acção criativa”. Num argumento de ordem jurídico-ontológica dir-se-ia
também que a concessão de poderes discricionários (ou de outra natureza) ilimitados
redundaria numa não-concessão: atribuir competência para “tudo fazer” é o mesmo
que não atribuir qualquer competência.
[8] MARCELO REBELO DE
SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, ob. cit., pág. 163 e ss.
[9] Na lição ainda
actual de AFONSO QUEIRÓ, A Função
Administrativa in Revista de Direito
e de Estudos Sociais, pp. 30 e ss. colhida por MARCELO REBELO DE SOUSA na
ob. cit., pág. 40.
[10] No mesmo sentido
TIAGO ANTUNES, O Ambiene entre Direito e
Técnica, AAFDL, 2003, pp. 25-26.
[11] Ou por outras
palavras um “juízo efectuado de acordo com cânones científicos e técnicos” –
LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, O
Procedimento Administrativo de Avaliação de Impacto Ambiental: para uma Tutela
Preventiva do Ambiente, Almedina, 1998, pág. 234.
[12] TIAGO ANTUNES, ob.
cit., pág. 23.
[13] Para uma análise da
jurisprudência portuguesa sobre o tema vide MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, A Discricionariedade Técnica na
Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, 1992, passim.
[14] CARLA AMADO GOMES, Risco e Modificação do Acto Autorizativo
Concretizador de Deveres de Protecção do Ambiente, 2007, pp. 500 e ss., LUÍS
FILIPE COLAÇO ANTUNES, ob. cit., pp. 235 e ss.
[15] CARLA AMADO GOMES, Risco…, pág. 501-502.
[16] TIAGO ANTUNES, ob.
cit. , pp. 29 e ss. que afirma “Uma
decisão técnica pode ser ou não discricionária. Há juízos técnicos de resultado unívoco e indiscutível. Mas outros há
em que não existe uma única solução verdadeira, mas antes várias possíveis. (…)Ou
seja, a utilização da Técnica não é, ao contrário do que muitos afirmam,
sinónimo de vinculação.”
[17] No sentido de
exteriores a uma compreensão média por parte de um intérprete-aplicador. A
questão tem assim uma dimensão maior apesar da sua acuidade nos casos de
recurso aos conceitos técnicos e científicos – no fundo envolve toda a problemática
da determinabilidade do significado de conceitos que pertencem a domínios específicos
de linguagem própria.
[18] Incertezas que no
campo da semântica se podem dividir em vagueza (indefinição das fronteiras
denotativas de uma palavra), polissemia (diversos significados referentes ao
mesmo vocábulo) e textura aberta (propriedade inerente a qualquer palavra
relativa à existência de uma zona de imprevisibilidade do seu significado, quer
devido à sua evolução do mesmo quer devido à evolução da realidade) – DAVID DUARTE,
A Discricionariedade…pp. 48-53.
[19] Porque a
determinação das incertezas conferidoras de discricionariedade e a determinação
dos conceitos de natureza técnica logicamente terá de ser distinta – no mínimo
porque no segundo caso intervêm os métodos e cânones da ciência em questão.
[20] Nesta sede parecem
ser úteis as considerações relativas à hermenêutica como “compreensão do
compreender” – sobre o tema vide, entre outros, KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 5.ª
ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.
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