quarta-feira, 22 de maio de 2013


A Responsabilidade Ambiental e o Problema da Legitimidade
Maria Francisca Schubeius de Landerset Gomes

I – Notas introdutórias sobre a responsabilidade ambiental e o regime legal aplicável; II – O problema da legitimidade no âmbito da responsabilidade ambiental; III – Conclusão.

I - Não se pode começar a discutir o problema da legitimidade na responsabilidade ambiental sem antes compreendermos um pouco do regime vigente nesta matéria.
O diploma nacional que hoje regula este aspecto é o já conhecido Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de Julho, que se refere à prevenção e reparação de dano ecológico (doravante, chamado de RPRDE ou DL 147/2008). Mas este diploma resultou da transposição da Directiva 2004/35/CE, de 21 de Abril de 2004 (doravante, somente chamada de Directiva). Importa analisar ambos os instrumentos legais para compreender a configuração do regime.
i)    Objecto e âmbito objectivo e subjectivo do RPRDE
Ao analisarmos os primeiros artigos do referido diploma, encontramos algumas linhas orientadoras. A primeira delas é qual o seu objecto, o qual vem referido no artigo 1.º. Repare-se que o artigo ora em análise se refere a danos ambientais. Surge, então, a questão de saber o que são danos ambientais. Em primeiro lugar e recordando todo o desenvolvimento doutrinário que surge a propósito da definição desta expressão, o dano ambiental definido neste artigo 1.º do RPRDE é o dano ambiental em sentido amplo, já que este se divide na clássica distinção entre dano ambiental (em sentido estrito) e dano ecológico, sendo que o próprio DL 147/2008 dá-nos uma definição deste último, no artigo 11.º, n.º 1, alínea e e uma definição daqueloutro na alínea d do mesmo artigo. Assim, como refere o artigo 1.º, do RPRDE, estabelece-se o regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais em sentido amplo e esse é o objecto do diploma que serve de base jurídica à nossa pesquisa. Sendo que o regime jurídico da responsabilidade por dano ambiental “stricto sensu” vem regulado no Capítulo II e o dano ecológico tem o seu regime jurídico no Capítulo III do DL 147/2008.
Quanto ao âmbito objectivo do DL 147/2008, podemos encontrar no artigo 2.º, n.º 1, a consagração de que o diploma se aplica aos danos ambientais em sentido amplo, tal como consagrados no artigo 11.º, n.º 1, alínea e e em conformidade com a Directiva [1].
Repare-se que, quanto ao âmbito subjectivo da Directiva, esta aplica-se quer àqueles que exercerem actividades “de risco” (as enumeradas no Anexo III à Directiva) e que daí resulte um dano ambiental em sentido amplo, quer àqueles que, embora não exercendo uma actividade enumerada no Anexo III, seja causadoras de danos às espécies e habitats naturais protegidos sempre que o agente actue com culpa ou negligência. Apesar de o DL 147/2008 ter o mesmo âmbito subjectivo (artigo 12.º e 13.º), note-se que o artigo 12.º, n.º 2, ressalva ainda a possibilidade de haver responsabilidade por outros danos, referidos no artigo 11.º, nomeadamente os danos causados à água e ao solo (artigo 11.º, n.º 1, alínea e, sub-alíneas ii) e ii)[2].
ii) A dualidade prevenção-reparação, no âmbito do DL 147/2008
O princípio da prevenção é, sem dúvida, um dos princípios estruturantes do Direito do Ambiente. O ditado “mais vale prevenir que remediar” serve bem para ilustrar o objectivo do Direito do Ambiente e o princípio orientador da regulação deste ramo de Direito. Isto porque os bens ambientais são de difícil reparação. Até a própria Constituição dá primazia à prevenção, naquela que é uma enumeração, ainda que meramente exemplificativa, das atribuições do Estado em matéria ambiental, constante do artigo 66.º, n.º 2, colocando-o logo na primeira alínea.
Com isto, poderia chegar-se à conclusão que estabelecer um princípio de prevenção e simultaneamente prever-se um regime de reparação seria contraditório. Mas vejamos como assim não é.
Em primeiro lugar, recordamos que a prevenção se poderá fazer de duas formas. A primeira consiste no princípio da proibição sob reserva de permissão que estabelece que, para exercício da liberdade de iniciativa económica por parte de um operador económico, é necessário estabelecer limites de tutela ambiental, que obriguem esses operadores a realizar certas prestações ou a absterem-se de realizá-las (as chamadas cláusulas modais, mais ou menos densificadas segundo o sector em que se encontrem)[3]. A segunda consiste na aplicação de um regime sancionatório aquando da violação de normas de protecção do ambiente. E esta lógica de prevenção está subjacente no próprio RPRDE, nos seus artigos 7.º, n.º 1, conjugado com o Anexo III, 14.º e 25.º e seguintes.
No entanto, o RPRDE inova num ponto em específico: a responsabilidade civil por danos ambientais em sentido amplo não é só uma responsabilidade de prevenção (apesar de ser este o objectivo primordial), é também uma responsabilidade de reparação e compensação.
No artigo 11.º, n.º 1, alínea m, do DL 147/2008, encontramos uma referência ao que sejam medidas de reparação, com remissão para o Anexo V – analisá-lo-emos. O n.º 1 começa por referir que a reparação dos danos ambientais deve ser feita através da restituição do ambiente ao seu estado inicial, por via de reparação primária, complementar e compensatória. Desenvolve, então, nas três alíneas que lhe seguem o que sejam estes diferentes tipos de reparação. A primeira (alínea a), a reparação primária, é a chamada restauração in natura, ou seja, sempre que possível deverá recorrer-se em primeira linha à reparação dos recursos afectados por aquela actuação, devolvendo-se o seu estado natural antes da mesma. Só se esta reparação não for possível, é que se deverá recorrer à reparação complementar (alínea b), sendo, portanto, este tipo de reparação sucedânea ou subsidiaria daquela, só actuando quando for económica ou facticamente impossível a restauração in natura. Por fim, só poderá ainda recorrer-se à reparação compensatória (alínea c), sendo que esta se destina a compensar perdas transitórias (as quais são densificadas na alínea d).
Mas mais importante, note-se, é o segundo parágrafo deste n.º 1 do Anexo V, o qual estabelece uma certa hierarquia entre estas reparações. Só se recorre à reparação complementar e compensatória quando a reparação primária não for plenamente conseguida[4].
Porém, não esqueçamos que esta hierarquia, em rigor, não está completa. Antes da reparação primária, urge dar primazia e a máxima importância à prevenção. Só se esta falhar é que se deverá recorrer à hierarquia referida supra.
iii)    Breve análise do procedimento de responsabilidade civil por dano ambiental e seus pressupostos
Não sendo este o principal objectivo do nosso estudo, mas reconhecendo a importância que tem conhecer o procedimento a adoptar para “accionar” a aplicação do regime da responsabilidade civil por dano ambiental, façamos uma breve análise do mesmo.
O traço característico e inovador do procedimento é a referida tendencial desadministravização do mesmo. Nos termos do artigo 16.º, n.º 1, do RPRDE, é o próprio lesante que deve apresentar um programa, devendo o mesmo ser aprovado pela autoridade competente, ou seja, a iniciativa pode advir de um acto do próprio operador, limitando-se a autoridade competente a emitir um acto administrativo paracontratual [5].
Contudo, a iniciativa de aplicação de medidas de reparação de danos pode não vir do próprio lesante[6]. Isto porque, à luz do disposto no artigo 16.º, n.º 2, do DL 147/2008, a iniciativa pode partir da autoridade competente, que, sendo confrontada com a falta de iniciativa do lesante, pode fixar oficiosamente medidas a tomar, seguindo o procedimento do n.º 4, do referido artigo[7]. Daí que, recordemos o que foi dito supra, o procedimento seja apenas tendencialmente (se não minoritariamente) desadministravizado.
Cumpre agora distinguir a responsabilidade subjectiva da responsabilidade objectiva, na esteira da separação que o próprio diploma em análise faz, respectivamente, nos artigos 8.º e 13.º e nos artigos 7.º e 12.º.
A responsabilidade subjectiva, num claro paralelismo com o Código Civil, pressupõe a omissão de deveres de diligência normal ou mesmo o dolo por parte do operador que exerce a actividade “ocupacional” (artigo 2.º, n.º 1, do DL 147/2008) e que pratica actos que consubstanciam uma “alteração adversa mensurável” (artigo 11.º, n.º 1, alínea d) ou de risco para uma “espécie e habitats naturais protegidos” (artigo 11.º, n.º 1, alínea e, subalínea i), da água (artigo 11.º, n.º 1, alínea e, subalínea ii) ou do solo (artigo 11.º, n.º 1, alínea e, subalínea iii), nos termos dos já referidos artigos 8.º e 13.º. Portanto, para a existência de responsabilidade subjectiva, é necessária a existência de um facto ilícito, que crie um dano ambiental e a existência de um nexo causal entre estes dois pressupostos, levando a que o agente fique obrigado a adoptar medidas de prevenção e reparação dos danos que causar (artigo 13.º do RPRDE).
Quanto à responsabilidade objectiva, uma breve referência histórica ao facto de, antes da aprovação do DL 147/2008, se discutir na doutrina se havia ou não lugar a uma responsabilidade objectiva[8]. No entanto, hoje é clara a sua existência, por consagração expressa nos artigos 7.º e 12.º do RPRDE. Assim, ao contrário do que acontece na responsabilidade subjectiva e, mais uma vez, em paralelismo com o regime do Código Civil[9], a responsabilidade objectiva não exige a existência de dolo ou negligência por parte do operador. Este, por ter os benefícios económicos que advêm do exercício de uma actividade ocupacional enumerada no Anexo III anexo ao DL 147/2008, fica automaticamente obrigado a adoptar medidas de prevenção ou reparação dos danos que causar por esse mesmo exercício[10].
II – O problema da legitimidade nas acções de responsabilidade ambiental poderá ser diferente consoante a acção seja proposta num Tribunal Cível ou num Tribunal Administrativo, dado que a responsabilidade civil ambiental não está reservada a meios contenciosos administrativos, podendo também ocorrer um litígio meramente entre particulares e sobre relações particulares[11].
No entanto, há que ressalvar uma questão que pode levar a equívocos quando não analisada em detalhe. Referimo-nos ao facto de o DL 147/2008 se referir, na epígrafe do Capítulo III, a uma “Responsabilidade Administrativa pela prevenção e reparação de danos ambientais” (itálico nosso). Ora, é no mínimo estranho que um diploma preveja a responsabilidade apenas da administração quanto a danos ecológicos. Será, então, essa a ratio do preceito? Carla Amado Gomes refere que não se trata, afinal de uma verdadeira responsabilidade isolada da administração. Aproveitando para criticar a opção do legislador pela incorrecta utilização do termo, que considera “descabida”, em face do que se dispõe no Preâmbulo do diploma sobre a necessidade de ser o operador causador do dano ecológico a suportar os custos da prevenção e reparação dos danos (independentemente da sua natureza pública ou privada), então, esta expressão “deve ter-se por não escrita”, uma vez que o que se pretende é afinal que a Administração seja investida em deveres específicos de informação, prevenção e reparação de danos ecológicos[12]. Retiramos das afirmações da autora que o Capítulo III tem aquela epígrafe simplesmente porque pretende que a Administração colabore ao máximo na prevenção e reparação de danos ecológicos, talvez servindo como um “motor” para que o regime se torne mais eficaz.
Não nos cabe a nós, no âmbito deste estudo, tecer uma opinião de concordância ou não com a da autora. Certo é que não foi, de facto, intenção do legislador consagrar uma responsabilidade objectiva da Administração, caso contrário não utilizaria expressões como “o operador que (…) causar um dano (…) é responsável pela adopção de medidas de prevenção e reparação…” ou “o operador que, com dolo ou negligência, causar um dano (…) é responsável pela adopção de medidas de prevenção e reparação…”.
Feita esta ressalva, cabe agora tecer algumas notas introdutórias à questão antes de analisarmos o regime da legitimidade processual nas acções de responsabilidade ambiental consoante o interveniente e o interesse e dano em questão. Isto porque temos de ter em conta que os interesses numa tutela ambiental podem ser diferentes. Assim, existe a distinção entre tutela de danos ambientais individuais e tutela de danos ecológicos supra individuais[13]. Note-se que esta distinção funda-se na própria distinção entre dano ambiental em sentido próprio e dano ecológico, já que na tutela de danos ambientais individuais trata-se de avaliar a responsabilidade por danos que afectam pessoas ou coisas (dano ambiental stricto sensu) enquanto que na tutela de danos ecológicos supra individuais se pretende a responsabilidade por danos criados à comunidade num todo. Sigamos de perto esta distinção, analisando a legitimidade relativamente a cada um dos tipos de tutela contenciosa.
i)    Legitimidade na tutela de danos ambientais individuais
Em primeira linha, diga-se que os danos ambientais individuais podem resultar da violação de um interesse directo de um particular, enquanto decorrência de um direito fundamental ao ambiente. Não sendo objecto do nosso estudo a questão da existência de um direito fundamental ou de um direito subjectivo ao ambiente, certo é que ele vem consagrado na nossa lei fundamental como um direito social no artigo 66.º da CRP, ainda que a maioria (se não mesmo toda) a doutrina tenha já considerado que este direito é um direito de natureza análoga a um direito liberdade e garantia[14].
Será, então, que se pode falar de um interesse directo e legítimo de um particular que vê o seu direito fundamental ao ambiente violado em propor uma acção de responsabilidade civil por dano ecológico contra o lesante? Não nos restam dúvidas de que sim. Isto porque, primeiro, o RPRDE nos artigos 7.º e 8.º, ao utilizarem a expressão “Quem (…) ofender direitos ou interesses alheios por via da lesão de um componente ambiental…”, pretende claramente abranger os directamente lesados na sua esfera e no seu direito fundamental ao ambiente e, segundo, em qualquer dos regimes gerais de legitimidade (o artigo 26.º do CPC e o artigo 9.º do CPTA) não há dúvidas de que este interveniente se encontra no centro da relação material controvertida.
Portanto, quanto à violação de interesses directos[15] de particulares individualmente considerados e concretamente determinados devido a danos ambientais individuais, o titular desse interesse directo pode propor acção de responsabilidade por danos ambientais, ao abrigo do DL 147/2008[16].
Porém, os danos ambientais individuais podem culminar noutro tipo de interesses a tutelar. Referimo-nos, em especial, aos direitos individuais homogéneos. Estes pressupõem a existência de um dano que, apesar de lesar particulares de forma diferenciada e individualizada, afecta mais do que um particular simultaneamente. Por exemplo, imagine-se que uma fábrica opera num espaço rodeado por 3 ou 4 habitações, causando danos ambientais a esses 3 ou 4 habitantes que, dessa forma, sofrem um danos diferentes, pelo mesmo facto.
O problema relativamente à violação destes direitos individuais homogéneos prende-se com o facto de eles terem a mesma causa de pedir e os pedidos poderem ser também eles idênticos. Os lesados têm ao seu dispor o mecanismo do litisconsórcio voluntário activo, ou seja, podem, numa mesma acção, porque possuem a mesma causa de pedir (a origem do dano é a mesma e os factos que o originaram são os mesmos), pedir a adopção de medidas de prevenção e/ou de reparação (dependendo do estágio do dano) ao mesmo réu. Não se diga, enfim, que o facto de as normas de protecção ao abrigo das quais estes sujeitos agem é de protecção específica e individualizada. Ela serve como norma habilitante para que certos indivíduos, uma vez lesados nos seus interesses ou direitos, possam ter um meio de tutela efectiva. E não se confunda esta questão com uma situação de lesam genérica da colectividade – ponto a que já iremos referir-nos aquando da análise da lesão de danos ecológicos (estes sim pressupõem a lesão de um bem colectivo).
ii) Legitimidade na tutela de danos ecológicos supra individuais
Recordando o que são danos ecológicos supra individuais, estamos perante situações em que a actuação de um certo operador afecta componentes ambientais naturais (ao seu chamado “estado-dever”), assim como a sua capacidade funcional ecológica e a capacidade de aproveitamento humano – refere-se, a propósito, de uma tripa contabilidade para efeitos de responsabilidade – [17] (dano ecológico) da colectividade e não apenas de uma pessoa ou um grupo de pessoas diferenciada e individualmente consideradas (supra individuais).
Recorde-se também que passamos, desta forma, à aplicação do Capítulo III do DL 147/2008, dado que, como referimos supra, este regula a responsabilidade por danos ecológicos, em especial.
Neste âmbito, podemos configurar três grandes casos em que se pretende a tutela de direitos da colectividade ao ambiente: acções intentadas por entidades públicas em defesa da colectividade; acções intentadas por Organizações Não Governamentais de Ambiente (doravante, ONGA); e acções intentadas ao abrigo do direito de acção popular.
Comecemos pelas primeiras, as acções intentadas por entidades públicas em defesa da colectividade. Cumpre explicitar que em causa não está a situação de uma pessoa colectiva pública propor uma acção de responsabilidade ambiental contra um operador por violação de danos ambientais. É claro que isso pode suceder, mas nesse caso estamos perante uma acção para defesa de interesses individuais, pois a pessoa colectiva pública lesada age no seu próprio interesse e não no interesse da colectividade. Tem-se em vista com esta distinção abranger aqueles casos em que uma entidade pública age em nome ou no interesse da colectividade, porquanto sejam essas as suas atribuições. Pense-se, por exemplo, no caso de duas autarquias vizinhas no qual uma delas propõe contra a outra uma acção de responsabilidade por dano ambiental (em sentido amplo, ressalve-se). Não é algo assim tão impensável, dado que facilmente uma autarquia pode violar o direito a um ambiente ecologicamente sadio de uma outra.
Nestes casos, não restam dúvidas de que a autarquia-autora tem um interesse em propor uma acção administrativa de responsabilidade por dano ambiental contra a autarquia-ré. Porque defensora de um direito da colectividade dos habitantes da sua autarquia e prossecutora do interesse público, ela tem legitimidade activa para propor a referida acção.
Quanto às acções de responsabilidade intentadas por ONGA, refira-se a título preliminar que estas são entidades colectivas privadas e, porquanto tenham personalidade jurídica, têm legitimidade activa para propor acções em geral.
Em especial, devemos recorrer à Lei n.º 35/98, de 18 de Julho (doravante, só e apenas intitulada de L 35/98), que regula o estatuto das organizações não governamentais de ambiente, e em especial ao seu artigo 10.º, alínea b, que sob a epígrafe legitimidade processual estabelece que as ONGA, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda, têm legitimidade para (…) intentar, nos termos da lei, acções judiciais para efectivação da responsabilidade civil relativa aos actos e omissões (…) de entidades públicas ou privadas que constituam ou possam constituir factor de degradação do ambiente (esta última decorre da aplicação da alínea a do artigo em análise, por remissão operada pela alínea b).
Da norma que se acaba de invocar retira-se que as ONGA podem propor acções judiciais para defesa do ambiente, sublinhe-se, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda. Ora, a referência a esta última questão merece alguma concretização. Carla Amado Gomes reclama a inutilidade do preceito, dado que as ONGA nunca prosseguem interesses directos na promoção de interesses de fruição colectiva[18]. Prosseguem, sim, interesses estatutários na intervenção do litígio. De facto, não podemos deixar de concordar que a insistência por este requisito é, no mínimo, estranha. Isto porque, se é verdade que as ONGA são organizações que visam, exclusivamente, a defesa e valorização do ambiente ou do património natural e construído, bem como a conservação da Natureza (artigo 2.º, n.º 1, da L 35/98) porquê referir que, independentemente do seu interesse directo na demanda, elas têm legitimidade processual, lá está, na proposição de acções de responsabilidade por danos ambientais. Por outras palavras, se elas podem propor acções de responsabilidade por danos ambientais, não é óbvio que elas as propõem porque estão a prosseguir um interesse directo (que é, afinal, um interesse estatutário) de defesa do ambiente? Parece-nos, portanto, que a correcta utilização desta expressão pelo legislador é dúbia.
De qualquer forma, não há como negar legitimidade activa a estas entidades, dado que elas têm um interesse legítimo na prossecução da acção. Relembremo-nos de que elas agem para defesa de bens ambientais colectivos. Não podem, ao abrigo da expressão utilizada pelo legislador e acima debatida, pretender prosseguir um interesse directo individual de um cidadão afectado individualmente.
Por fim, cumpre analisar as situações em que pode haver acções intentadas ao abrigo do direito de acção popular. Deixámos esta questão para o fim propositadamente, pois é um caso comum na jurisprudência e o que, porventura, terá mais interesse para o presente estudo. O direito de acção popular surge hoje consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição, e tem um objectivo de alargamento da legitimidade procedimental e processual. É na alínea a do preceito em análise que encontramos fundamento constitucional para a acção popular para defesa do ambiente, dado que é nela que se estabelece o direito a uma tutela de interesses difusos. Durante longos anos (desde a aprovação do artigo 52.º, n.º 3, da Constituição, tal como ele se configura hoje, na Revisão Constitucional de 1989) este preceito não tinha concretização pela lei ordinária, sendo que foi apenas em 1995, ano em que foi aprovada a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (doravante, LAP), é que se regulou o exercício do direito de acção para defesa de interesses difusos.
A título preliminar, refira-se que a acção popular não constitui um tipo de acção! E, em nosso ver, ela não surge isolada, antes deve ser entendida como um direito – existe um direito à acção popular, quanto muito um direito de exercício de um mecanismo de extensão da legitimidade, não uma mera “acção popular”.
Segundo ponto a esclarecer é o âmbito de aplicação da LAP. Quanto ao âmbito objectivo, deparamo-nos com um elenco meramente exemplificativo, no artigo 1.º, n.º 2, da LAP, dos interesses tutelados. Ainda assim, temos a referência específica ao ambiente. O âmbito subjectivo resulta do disposto no artigo 2.º, da LAP – têm legitimidade para propor uma acção ao abrigo do direito de acção popular aqueles que tenham o gozo de direitos civis e políticos.
Surge, no entanto, a questão de saber se o direito de acção popular abrange somente a defesa de interesses difusos (interesses da colectividade) ou também a defesa de interesses individuais homogéneos, tal como configurados por nós supra. Por um lado, seria de difícil configuração que estes últimos estivessem abrangidos, isto se virmos o direito de acção popular como um direito de defesa de interesses da colectividade, interesses que não são individualizáveis. Ou seja, se o direito que se pretende defender for um direito que se pode autonomizar e atribuir a um só sujeito ou a sujeitos determinados, a acção popular não seria necessária, dado que esse ou esses sujeitos poderiam propor a acção em causa ao abrigo da regra geral de legitimidade. Reservar-se-ia o direito de acção popular para a defesa de direitos que não são individualizáveis, isto é, para violações de direitos de ninguém em concreto, mas de todos em abstracto. Por outro lado, se analisarmos o regime da LAP chegamos à conclusão de que existe uma série de disposições que nos fazem crer que essa não foi a intenção do legislador, ou seja, que este não pretendeu vedar o acesso ao direito de acção popular à defesa de interesses individuais homogéneos. Atente-se, a título de exemplo, mas para nós o mais flagrante, no artigo 22.º da LAP. No n.º 1 deste preceito, refere-se que A responsabilidade por violação dolosa ou culposa dos interesses previstos no artigo 1.° constitui o agente causador no dever de indemnizar o lesado ou lesados pelos danos causados. Ora, se se permite a atribuição de uma indemnização individualmente ao lesado ou lesados, parece configurar-se que um lesado ou vários lesados podem agir ao abrigo do mecanismo da acção popular para obter uma indemnização pelos danos causados. Em contraposição, o n.º 2 impõe que, quando não seja possível determinar concretamente quais ou qual o lesado pela actuação ilícita de um operador, a indemnização é fixada globalmente. Na verdade, esta situação causa-nos alguma perplexidade, pois parece que o legislador quis abrir ainda mais o âmbito de aplicação da acção popular, acabando por determinar que esta se poderá accionar até nos casos de legitimidade activa singular do regime geral do CPC ou do CPTA.
Contudo, não se pode negar que a acção popular está pensada para a defesa de interesses difusos e para a tutela da violação de direitos individuais homogéneos.
Questão também conexa com aquela outra que acabámos de referir é a de saber qual o destinatário da indemnização atribuída no âmbito de uma acção na qual é parte um autor popular. Por um lado, deparamo-nos com a repressão de acções cuja única finalidade do autor é obter para si um benefício à custa da comunidade ou, melhor dizendo, à custa da violação de um bem da colectividade. Por outro lado, sendo que a indemnização serve como uma (tentativa) de ressarcimento de danos, surge-nos o problema de como conjugar essa finalidade com a característica colectiva do bem em causa. Bom, a questão surge resolvida com a criação do Fundo de Intervenção Ambiental (agora em diante, intitulado de FIA), pela Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, entidade que fica assim encarregue de receber os valores das indemnizações por violação de interesses difusos.
Em suma, a acção popular, sendo um mecanismo de alargamento da legitimidade activa, conferindo um direito aos cidadãos de se organizarem e proporem uma acção para defesa quer de interesses difusos, quer de interesses individuais homogéneos, pode ser utilizada facilmente como forma de um grupo de cidadãos, querendo proteger o direito ao ambiente, agir contra violações desses mesmo direito, exigindo a responsabilidade por dano ecológico (quando se trate da defesa de interesses difusos) ou por dano ambiental (quando esteja em causa a defesa de diretos individuais homogéneos) ao lesante, ao abrigo dos artigos 12.º e 13.º do RPRDE.

III – Com o presente texto pretendeu-se demonstrar as inúmeras formas de agir contra violações ou ameaças de violações de direitos de natureza ambiental. Quer individualmente, quer concertadamente, seja para defesa de interesses da colectividade ou interesses difusos, seja para defesa de interesses individuais directos ou homogéneos, o legislador tem encontrado e consagrado várias formas de se fazer accionar o regime da responsabilidade por danos ambientais em sentido amplo.


[1] Cfr. Carla Amado Gomes, A responsabilidade civil por dano ecológico, p. 138, que refere que o RPRDE alargou o âmbito objectivo de aplicação do diploma, aquando da transposição da Directiva, dado que esta apenas pretende a protecção de espécies e habitats protegidos ao abrigo da Rede Natura 2000 e o DL 147/2008, além da protecção das espécies e habitats protegidos naquela rede, aplica-se também ao Sistema Nacional de Áreas Classificadas.
[2] Cfr. Carla Amado Gomes, A responsabilidade civil por dano ecológico, p. 139, refere a existência de um verdadeiro alargamento do âmbito subjectivo de aplicação, relativamente à Directiva, que obriga apenas à protecção das espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000.
[3] Cfr. Carla Amado Gomes, A responsabilidade civil por dano ecológico, p. 141.
[4] Cfr. Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 184, que afirma que o RPRDE, ao consagrar a noção de perdas transitórias, preocupa-se com a reparação verdadeiramente integral do dano ecológico, ou seja, não basta que haja uma restauração parcial ou ficcional do estado inicial das coisas, devendo haver também uma preocupação com o que se perdeu entretanto.
[5] Cfr. Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 191; julgamos que a autora pretende, com esta expressão, referir que a decisão final, não deixando de ser um acto administrativo (artigo 120.º do CPA), decorre da aprovação de uma “proposta contratual” por parte do lesante, ou seja, este propõe à entidade competente uma série de medidas de reparação do dano, limitando-se esta a aceitar tal plano. Daí a ideia de que este acto decorre de um “acordo de vontades”.
[6] Questiona-se mesmo a utilidade prática de tal iniciativa…
[7] Apenas em situações de extrema urgência pode este procedimento ser preterido, nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 2, do DL 147/2008.
[8] Freitas do Amaral e Vasco Pereira da Silva defendiam a sua existência, em face do antigo artigo 41.º da Lei de Bases do Ambiente, que parecia consagrar um princípio geral de responsabilidade objectiva. Contra, Carla Amado Gomes defendia que não existia tal princípio, dado que o preceito de onde se pretendia retirá-lo ser insuficientemente densificado, não permitido tal conclusão.
[9] A chamada responsabilidade pelo risco (artigos 499.º a 510.º do Código Civil).
[10] Note-se que todas estas actividades estão, à partida, ligadas a consequências lesivas do ambiente. E repare-se, ainda, que a responsabilidade subjectiva não se restringe a certas actividades que pressupõem risco para o meio ambiente. Qualquer actividade pode accionar a responsabilidade subjectiva. Ao passo que a responsabilidade objectiva está vinculada a um certo tipo de actividades acompanhadas de uma presunção de risco de produção de danos ecológicos.
[11] Imagine-se, por exemplo, um particular que intenta uma acção contra o proprietário (particular e pessoa singular) de uma fábrica a funcionar perto da habitação do primeiro em clara violação de deveres de cumprimento das normas ambientais, produzindo um dano ambiental stricto sensu, porque lesante de um direito subjectivo do primeiro. Nem sempre a questão de saber se um litígio em matéria ambiental deve ser proposta em tribunais civis ou tribunais administrativos foi clara (porventura, ainda é controversa), tendo já os tribunais recusado o conhecimento de certas causas por incompetência absoluta.
[12] Cfr. Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 189 e 190.
[13] Cfr. José Eduardo Figueiredo Dias, Aspectos Contenciosos da Efectivação da Responsabilidade Ambiental – A questão da legitimidade, em especial, pp. 545 e 546.
[14] Dada a sua forte dimensão negativa, ou seja, o direito que todos os cidadãos têm a que, quer entidades privadas, quer entidades públicas, se abstenham de praticar actos que violem o direito ao ambiente. Com efeito, é mais fácil configurar um direito a que outros não poluam o ambiente ou não ponham em causa o ambiente sadio. Isto porque o nosso ponto de partida no que toca à natureza é o seu regular funcionamento, ou seja, a natureza existe num certo ponto de equilíbrio – a fauna, a flora e outros componentes naturais (ar, água e solo) encontram-se num estado de perfeito equilíbrio antes da intervenção humana. E o que se pede é a manutenção desse estado das coisas e não o contrário, dado que o contrário pressupõe a existência de um desequilíbrio, à partida, causado pela actuação humana. Portanto, em plena concordância com o princípio da prevenção, é muito mais aconselhável pedir a entidades públicas ou privadas que não ponham em causa o equilíbrio e o estado normal em que se encontra a natureza ab initio.
[15] Apenas a título acessório, cumpre deixar claro que evitámos a utilização da expressão “direitos subjectivos” dada a controvérsia doutrinária sobre se existe, de facto, um direito subjectivo ao ambiente. Em defesa da existência de tal direito, Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito.
[16] No mesmo sentido, Cfr. José Eduardo Figueiredo Dias, Aspectos Contenciosos da Efectivação da Responsabilidade Ambiental – A questão da legitimidade, em especial, p. 546.
[17] Cfr. Cunhal Sendim, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos, p. 29 a 41.
[18] Cfr. Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 226.

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