I. A responsabilidade
ambiental ocupa um lugar central no Direito do Ambiente – e de outra forma não
poderia ser[1].
E porque falar em responsabilidade não é mais do que falar de imputação de
danos ocorridos numa esfera jurídica a uma outra diferente[2]
afigura-se desde logo essencial recortar de um universo ilimitado quais os
danos susceptíveis de originar essa imputação. As palavras que se seguem
destinam-se, pois, a analisar o conceito de “dano ecológico” e o seu papel como
pressuposto neste tipo específico de responsabilidade. E, desde já, surge a
necessidade de uma nota explicativa: fala-se no título em “desconceptualizar”
pois o presente exercício crítico é tentado numa lógica de desconstrução, de testar
a utilidade das actuais teses sobre a questão face às normas vigentes no nosso
ordenamento jurídico[3].
Confessa-se: uma empreitada desta envergadura com pretensões de sucesso mínimo
deveria ser levada a cabo com outra seriedade, com muito maior maturação do
pensamento sobre o tema e, quiçá, noutra sede. Daí que, e correndo o risco
enfadonho da repetição, o que se oferece é um mero esboço de reflexão sobre o
problema.
II. Antes de tudo e de
mais: o que entender por dano? Esta pergunta, apesar das suas vestes algo
óbvias, encerra uma consideração prévia importante: é necessário encontrar um
conceito de dano dotado de abstracção mas operativo o suficiente para que
consiga atravessar todo o espaço da juridicidade e ser utilizado como uma
espécie de password nos diferentes
domínios em que a imputação de danos se efectiva – e que, nesta sede mais
modesta, sirva de referencial para estabelecer toda argumentação posterior.
Assim, é possível ensaiar a seguinte definição: um dano será uma supressão ou
diminuição de uma situação favorável valorada juridicamente – isto é, protegida
pelo Direito[4].
Assumindo este passo como adquirido seguem-se outras interrogações que
inevitavelmente afundam a reflexão na densidade do problema: como identificar
então uma situação favorável tutelada pelo Direito – e subsequentemente o
respectivo dano? Essa valoração ou ponderação é levada a cabo, de forma
genérica, através de duas maneiras: i) a individualização de um bem jurídico
através da sua atribuição mediante uma permissão normativa; ii) a protecção
conferida a uma vantagem que não é susceptível de uma individualização e de um aproveitamento
individual. Do que resulta que em i) a tutela jurídica se consubstancia num
direito subjectivo e que nas situações enquadráveis em ii) se estará perante
realidades como interesses (reflexamente) protegidos. É de salientar que em
causa estão apenas formas de protecção dos bens jurídicos em jogo – sendo que
alguns, pela sua natureza, permitem um aproveitamento directo, exclusivo e
individualizável; já quanto aos restantes, pelo contrário, não é possível o seu
recorte e atribuição individual[5].
III. Embora partindo destes
quadros conceptuais o dano ecológico carece obviamente de um afinamento muito
maior nas suas notas distintivas. E esse afinamento pressupõe, como já se
deixou entrever, uma delimitação precisa dos bens jurídicos em causa – isto é,
dos bens jurídico-ambientais que, sendo lesados, podem dar origem a este tipo
de danos. Essa demarcação (porque normativa) deve partir da tutela jurídico-constitucional
conferida pelo nosso ordenamento ao ambiente[6].
Assim, no artigo 9.º alíneas d) e e), a Constituição assume como tarefas
fundamentais do Estado quer a “efectivação dos direitos ambientais” quer a
“defesa da natureza e do ambiente” e a “preservação dos recursos naturais” –
enunciando uma vertente objectiva na protecção do ambiente. Já o artigo 66.º
CRP evidenciaria, na leitura de alguns autores, a índole subjectiva ao
consagrar um direito fundamental ao ambiente na esfera dos particulares[7].
A controvérsia em torno desta norma tem sido um dos pontos mais acesos no
debate jurídico-ambiental português e quanto a ela cumpre referir apenas o
seguinte: sem querer minorar a importância da discussão, para os efeitos da
presente análise parece ser de destacar a dimensão de protecção objectiva –
isto é, do dever de protecção do ambiente[8]
– sem qualquer pretensão de aderir a uma tese ou outra. E esta consideração justifica-se
com o que foi referido supra acerca das diversas formas de protecção de bens
jurídicos - sendo que neste caso é possível distinguir, quanto a estes bens: a)
o ambiente como um todo composto por diversos elementos em interacção e em si
mesmo insusceptível de um aproveitamento individualizável; b) os diversos
elementos considerados individualmente e susceptíveis de um certo grau de
apropriação como, por exemplo, o solo, os cursos de água, a atmosfera, a fauna
ou a flora, entre outros[9].
IV. Esta partição dos bens
jurídicos ambientais não desconsidera o facto de estarem sempre em causa danos
ao ambiente – e por isso a doutrina procede à distinção entre danos ambientais stricto sensu e danos ecológicos: embora
ambos resultem de lesões a componentes ambientais o dano ambiental traduz-se
num dano a pessoas e bens; já o dano ecológico releva apenas pelo prejuízo
provocado no elemento natural. Desde logo se excluem, do conceito de dano
ecológico, a maioria dos danos patrimoniais e danos morais como lesões aos
direitos de personalidade. O mesmo é dizer que os danos ecológicos são lesões a
elementos naturais, mas os danos ambientais são prejuízos provocados por essas
lesões – o que significa que são, a maioria das vezes, provocados por danos
ecológicos[10].
Mas não é toda e qualquer lesão a um elemento natural que pode originar
responsabilidade ambiental – a gravidade ou intensidade da lesão tem sido
apontada como critério na aferição de existência ou não de danos ecológicos[11]
pelo que se pode dizer que lesões capazes de comprometer os próprios
componentes ambientais ou a sua interacção com outros e com o meio ambiente
como um todo inserem-se numa área de certeza positiva quanto à qualificação
como danos ambientais, ao passo que as lesões irrelevantes na capacidade
funcional dos elementos ambientais enquadrar-se-iam na zona de certeza
negativa. Este critério, a ser o eixo principal de distinção, levanta dois
claros problemas: em primeiro lugar o facto de se basear no carácter altamente
gradativo da intensidade da lesão que carece necessariamente de “subcritérios”
que o densifiquem até um ponto operacional – o que leva a que entre as duas
zonas de certeza exista um enorme espaço de incerteza na classificação das
lesões como danos ecológicos; em segundo lugar o facto de haver lesões
qualificáveis como danos ecológicos não em razão de um critério funcional como
a gravidade da lesão mas atendendo a outros – é o caso da eliminação dos
últimos exemplares de uma espécie em vias de extinção uma vez que o
desaparecimento súbito, pelo reduzido número da sua população, já não
condicionaria ou afectaria o meio ambiente[12].
V. A utilidade deste
binómio das lesões ambientais levanta ainda mais dúvidas se atentarmos no facto
de que o quadro normativo vigente e aplicável a este problema parece ignorar
por completo esta equação – veja-se, por um lado, a Directiva 2004/35/CE, que faz
referência apenas a “danos ambientais” no artigo 2.º/1 alíneas a) a c) e no
artigo 2.º/2 a um conceito mais lato de “danos”, e no artigo 3.º/1 alíneas a) e
b) estabelece o seu âmbito de aplicação relativamente aos danos ambientais provocados
pelas actividades enumeradas no Anexo III ou diferentes; e, por outro, no
Decreto-Lei n.º 147/2008 de 29 de Julho que a transpõe para a ordem jurídica
portuguesa o artigo 2.º/1 e o número 2.º, que exclui do conceito de danos
ambientais lesões provocadas por causas específicas, e o artigo 11.º/1 alíneas
e), i) a iii). É incontornável a pergunta: fará sentido, em última análise, proceder
a tal distinção quando a lei não o faz? A resposta é contudo afirmativa: apesar
de tanto a Directiva como o Decreto-Lei n.º 147/2008 utilizarem apenas as
locuções “danos ambientais” e não fazerem qualquer alusão a danos ecológicos,
uma leitura atenta dos preceitos mencionados mostrará que ambos se referem, na
verdade, ao conceito de danos ecológicos acima desenvolvido – em termos
simples, o que a doutrina chama de danos ecológicos a lei apelida de danos
ambientais. O sentido da divisão das lesões ambientais lato sensu em danos ambientais e danos ecológicos explica-se pelas
significativas especificidades que estes últimos apresentam na sua imputação[13]
e na posterior reparação ou eliminação[14]:
quanto à imputação veja-se, por exemplo, as singularidades do regime do nexo de
causalidade que liga o facto à lesão ou dano no artigo 5.º do Decreto-Lei;
relativamente à gestão do dano é de notar, por um lado, que a lógica de
prevenção é muito forte[15]
ao permitir a adopção das respectivas medidas na presença de uma mera ameaça
nos termos do artigo 14.º, por outro, que na reparação dos danos ecológicos a
primazia é dada à modalidade da reparação in
natura – vejam-s os artigos 15.º e 16.º do Decreto-Lei - em concreto à restauração
ecológica, que consiste na reabilitação do componente ambiental lesado, ou à
compensação ecológica, que se destina a criar ou aumentar a função de outros
elementos ambientais por forma a colmatar a insuficiência do componente lesado[16].
IV. Como conclusão desta
breve reflexão é possível sumariar as seguintes ideias: i) é desde logo útil procurar
conceitos normativos, de natureza aberta mas operativa, que permitam o acesso a
institutos que, embora conheçam conformações e concretizações diferenciadas, são
transversais no espaço da juridicidade – é o caso do dano para a
responsabilidade; ii) a protecção dos bens jurídicos pelo Direito pode ser
conseguida por duas formas: a individualização e atribuição dos mesmos a
pessoas ao permitir o seu aproveitamento directo com algum grau de
exclusividade através de permissões normativas específicas – os direitos
subjectivos; não sendo possível essa individualização ou aproveitamento (como é
o caso do meio ambiente considerado como sistema em que interagem diferentes componentes)
a tutela é conseguida de forma objectiva, através de normas de conduta, proibitivas
ou impositivas, que no fundo se destinam a impedir comportamentos lesivos
desses bens – por exemplo os interesses reflexamente protegidos; iii) a distinção
feita pela doutrina entre danos ambientais e danos ecológicos, diferenciação
que não é colhida pelo legislador, explica-se por duas ordens de razões: em
primeiro lugar era necessário destacar os danos ecológicos dos restantes quer
pelas suas especificidades próprias enquanto danos, quer pela singularidade da
responsabilidade ambiental nos seus pressupostos e nos seus modelos de
imputação desses danos; em segundo lugar ela apresenta virtualidades
expositivas e pedagógicas quer quanto à explanação da natureza dos diferentes
danos, quer no que toca ao estudo e compreensão dos diferentes bens
jurídicos-ambientais em jogo; iv) a problemática dos danos ecológicos e da sua
reparação constitui um espaço propício à concretização de princípios
referenciais como, por exemplo, o princípio da precaução, da prevenção, do
poluidor pagador e da correcção na fonte – bem como uma manifestação da “principialidade”
do Direito do Ambiente.
[1] Conceber um ramo de Direito,
independentemente do grau de especialidade que apresente relativamente a outros,
que desconsiderasse por completo a problemática da imputação de danos aos bens
jurídicos que tutela seria tarefa hercúlea cujos processos assumiriam contornos
esfíngicos relativamente à sua compreensão. MENEZES CORDEIRO, por exemplo e
quanto ao Direito Civil, enquadra a matéria na categoria dogmática dos
“institutos jurídicos”- conjuntos concatenados de normas e princípios, que se
explicam pelas insuficiências de uma doutrina geral baseada apenas nestes,
orientados à criação de modelos de decisão – vide, no seu Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Tomo I, reimp. 3.ª ed.,
Almedina, 2007 as págs. 365 e ss. e 419 e ss.
[2] Excepcionando aquele que se
considera o princípio geral, e concretizador de justiça distributiva, de
suportação do dano pela esfera onde ocorra – ubi commoda, ibi incommoda – isto é, fazer correr os riscos das
vantagens por quem beneficia das mesmas. Sobre o tema da imputação de danos
vide, por todos, MENEZES CORDEIRO, ob. cit., pp. 419-421. Sobre o problema da justiça distributiva como modelo
social no campo da filosofia moral e política vide, do incontornável JOHN RAWLS
, A Theory of Justice, ed. revista da
de 1971, The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, pp. 228 e ss.
[3] Em concreto a Directiva 2004/35/CE
do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004 e o Decreto-Lei
n.º147/2008 de 29 de Julho.
[4] Nesta matéria segue-se de novo, e
como não podia deixar de ser, o entendimento de MENEZES CORDEIRO - Tratado…, Vol. II, Tomo III, Almedina,
2010, pág. 511.
[5] Parece ser este o entendimento de
VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto
Administrativo Perdido, Almedina, 1996, pp. 217 e ss. bem como o de HELOÍSA
OLIVEIRA, A Reparação do Dano Ecológico, 2010,
pág. 8: o de que, em última análise, se trata de uma diferença quantitativa e
não qualitativa, de conteúdo e não de estrutura. Numa metáfora algo ilustrativa
a contraposição pode explicar-se através de duas imagens: na primeira um foco
directo de luz - uma lanterna, por exemplo – incide sobre um objecto,
permitindo a sua apreensão pela visão humana; noutra a luz não é apontada
directamente ao objecto mas sim a um espelho que “reflecte” a sua imagem –
nestes casos a fonte da luz não é directa mas sim reflexa.
[6] No mesmo sentido CUNHAL SENDIM, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos in
Cadernos do CEDOUA, Almedina, 2002, pp.
29 e ss.
[7] Assim depõem, por exemplo, VASCO
PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito –
Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002, pp. 25 e ss.; CUNHAL SENDIM,
ob. cit. pág. 30.
[8] Rejeitando a tese subjectivista
refere CARLA AMADO GOMES que “não
descurando o carácter apelativo da ideia, deve sublinhar-se que tal noção é
juridicamente inócua (porque vazia) e axiologicamente ambígua (dado que assenta
em pressupostos incorrectos). Na perspectiva jurídica, é imprestável, pois não
ganha autonomia relativamente aos direitos pessoais ou patrimoniais. Do ponto
de vista axiológico, é enganosa, uma vez que induz o sujeito na convicção de
livre disponibilidade e egoística fruição de um bem do qual não dispõe
livremente, porque não lhe pertence. ” in Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2012, pág. 31.
[9] HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág. 9.
[10] ANA PERESTRELO OLIVEIRA, Causalidade e Imputação na Responsabilidade
Civil Ambiental, Almedina, 2007, pág. 13; CUNHAL SENDIM, ob. cit., pág. 37;
HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág. 6.
[11] HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág.
10.
[12] HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág.
12.
[13] CARLA AMADO GOMES, A Responsabilidade Civil por Dano Ecológico –
Reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL 147/2008, de 29
de Julho in O direito, A. 141,
n.º1, 2009, pp. 240 e ss. bem como CUNHAL SENDIM, ob. cit., pp. 39 e ss. Sobre
o tema da responsabilidade civil ambiental como tipo singular de imputação de
danos ainda mais singulares vide TIAGO ANTUNES, Da Natureza Jurídica da Responsabilidade Ambiental in Temas do Direito do Ambiente, n.º 6,
Coimbra, 2011, pp. 137 e ss, em particular sobre as especificidades dos
pressupostos ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade…,
passim, e A Prova do Nexo de Causalidade
na Lei da Responsabilidade Ambiental in Temas…,
pp. 97 e ss.
[14] Sobre o problema vide, entre
outros, HELOÍSA OLIVEIRA, A Restauração
Natural no Novo Regime Juridico de Responsabilidade Civil por Danos Ambientais in
Temas…, pp. 117 e ss. e CARLA AMADO
GOMES, O Regime de Prevenção e Reparação
do Dano Ecológico: Algumas Questões in Direito
do Urbanismo e do Ambiente: Estudos Compilados, 2010, pp. 345 e ss.
[15] Estando a responsabilidade
ambiental no coração do Direito do Ambiente não é de admirar a preponderância
que os princípios da precaução e da prevenção assumem no seu âmbito – mais
ainda atentas as dificuldades intrínsecas à reparação de danos ecológicos. A
bibliografia sobre estes princípios é extensa, podendo referir-se, a título
exemplificativo, ALEXANDRA ARAGÃO, Dimensões
Europeias do Princípio da Precaução, in Revista
da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, A. 7, n.º especial, 2010,
pp. 245 e ss., JAMES CAMERON/JULI ABOUCHAR, The
Precautionary Principle: A Fundamental Principle of Law and Policy for the
Protection of the Global Environment in Boston
College International and Comparative Law Review, Vol. 14, Issue 1. Sobre
estes princípios mas com uma postura particularmente crítica relativamente à
utilidade da autonomização do princípio da precaução vide CARLA AMADO GOMES, Introdução…, pp. 68 e ss.
[16] HELOÍSA OLIVEIRA, A Restauração…, pp. 119-121. A
compensação pecuniária é também uma forma de “reparação” dos danos ecológicos –
mas face à natureza dos bens em questão, à importância de procurar sempre que
possível a sua reparação in natura e
às características específicas dos agentes lesivos mais frequentes assume menos
importância em sede de responsabilidade ambiental.
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