quarta-feira, 22 de maio de 2013

Da (des)conceptualização do dano ecológico: breve reflexão sobre o problema

I. A responsabilidade ambiental ocupa um lugar central no Direito do Ambiente – e de outra forma não poderia ser[1]. E porque falar em responsabilidade não é mais do que falar de imputação de danos ocorridos numa esfera jurídica a uma outra diferente[2] afigura-se desde logo essencial recortar de um universo ilimitado quais os danos susceptíveis de originar essa imputação. As palavras que se seguem destinam-se, pois, a analisar o conceito de “dano ecológico” e o seu papel como pressuposto neste tipo específico de responsabilidade. E, desde já, surge a necessidade de uma nota explicativa: fala-se no título em “desconceptualizar” pois o presente exercício crítico é tentado numa lógica de desconstrução, de testar a utilidade das actuais teses sobre a questão face às normas vigentes no nosso ordenamento jurídico[3]. Confessa-se: uma empreitada desta envergadura com pretensões de sucesso mínimo deveria ser levada a cabo com outra seriedade, com muito maior maturação do pensamento sobre o tema e, quiçá, noutra sede. Daí que, e correndo o risco enfadonho da repetição, o que se oferece é um mero esboço de reflexão sobre o problema.

II. Antes de tudo e de mais: o que entender por dano? Esta pergunta, apesar das suas vestes algo óbvias, encerra uma consideração prévia importante: é necessário encontrar um conceito de dano dotado de abstracção mas operativo o suficiente para que consiga atravessar todo o espaço da juridicidade e ser utilizado como uma espécie de password nos diferentes domínios em que a imputação de danos se efectiva – e que, nesta sede mais modesta, sirva de referencial para estabelecer toda argumentação posterior. Assim, é possível ensaiar a seguinte definição: um dano será uma supressão ou diminuição de uma situação favorável valorada juridicamente – isto é, protegida pelo Direito[4]. Assumindo este passo como adquirido seguem-se outras interrogações que inevitavelmente afundam a reflexão na densidade do problema: como identificar então uma situação favorável tutelada pelo Direito – e subsequentemente o respectivo dano? Essa valoração ou ponderação é levada a cabo, de forma genérica, através de duas maneiras: i) a individualização de um bem jurídico através da sua atribuição mediante uma permissão normativa; ii) a protecção conferida a uma vantagem que não é susceptível de uma individualização e de um aproveitamento individual. Do que resulta que em i) a tutela jurídica se consubstancia num direito subjectivo e que nas situações enquadráveis em ii) se estará perante realidades como interesses (reflexamente) protegidos. É de salientar que em causa estão apenas formas de protecção dos bens jurídicos em jogo – sendo que alguns, pela sua natureza, permitem um aproveitamento directo, exclusivo e individualizável; já quanto aos restantes, pelo contrário, não é possível o seu recorte e atribuição individual[5].

III. Embora partindo destes quadros conceptuais o dano ecológico carece obviamente de um afinamento muito maior nas suas notas distintivas. E esse afinamento pressupõe, como já se deixou entrever, uma delimitação precisa dos bens jurídicos em causa – isto é, dos bens jurídico-ambientais que, sendo lesados, podem dar origem a este tipo de danos. Essa demarcação (porque normativa) deve partir da tutela jurídico-constitucional conferida pelo nosso ordenamento ao ambiente[6]. Assim, no artigo 9.º alíneas d) e e), a Constituição assume como tarefas fundamentais do Estado quer a “efectivação dos direitos ambientais” quer a “defesa da natureza e do ambiente” e a “preservação dos recursos naturais” – enunciando uma vertente objectiva na protecção do ambiente. Já o artigo 66.º CRP evidenciaria, na leitura de alguns autores, a índole subjectiva ao consagrar um direito fundamental ao ambiente na esfera dos particulares[7]. A controvérsia em torno desta norma tem sido um dos pontos mais acesos no debate jurídico-ambiental português e quanto a ela cumpre referir apenas o seguinte: sem querer minorar a importância da discussão, para os efeitos da presente análise parece ser de destacar a dimensão de protecção objectiva – isto é, do dever de protecção do ambiente[8] – sem qualquer pretensão de aderir a uma tese ou outra. E esta consideração justifica-se com o que foi referido supra acerca das diversas formas de protecção de bens jurídicos - sendo que neste caso é possível distinguir, quanto a estes bens: a) o ambiente como um todo composto por diversos elementos em interacção e em si mesmo insusceptível de um aproveitamento individualizável; b) os diversos elementos considerados individualmente e susceptíveis de um certo grau de apropriação como, por exemplo, o solo, os cursos de água, a atmosfera, a fauna ou a flora, entre outros[9].

IV. Esta partição dos bens jurídicos ambientais não desconsidera o facto de estarem sempre em causa danos ao ambiente – e por isso a doutrina procede à distinção entre danos ambientais stricto sensu e danos ecológicos: embora ambos resultem de lesões a componentes ambientais o dano ambiental traduz-se num dano a pessoas e bens; já o dano ecológico releva apenas pelo prejuízo provocado no elemento natural. Desde logo se excluem, do conceito de dano ecológico, a maioria dos danos patrimoniais e danos morais como lesões aos direitos de personalidade. O mesmo é dizer que os danos ecológicos são lesões a elementos naturais, mas os danos ambientais são prejuízos provocados por essas lesões – o que significa que são, a maioria das vezes, provocados por danos ecológicos[10]. Mas não é toda e qualquer lesão a um elemento natural que pode originar responsabilidade ambiental – a gravidade ou intensidade da lesão tem sido apontada como critério na aferição de existência ou não de danos ecológicos[11] pelo que se pode dizer que lesões capazes de comprometer os próprios componentes ambientais ou a sua interacção com outros e com o meio ambiente como um todo inserem-se numa área de certeza positiva quanto à qualificação como danos ambientais, ao passo que as lesões irrelevantes na capacidade funcional dos elementos ambientais enquadrar-se-iam na zona de certeza negativa. Este critério, a ser o eixo principal de distinção, levanta dois claros problemas: em primeiro lugar o facto de se basear no carácter altamente gradativo da intensidade da lesão que carece necessariamente de “subcritérios” que o densifiquem até um ponto operacional – o que leva a que entre as duas zonas de certeza exista um enorme espaço de incerteza na classificação das lesões como danos ecológicos; em segundo lugar o facto de haver lesões qualificáveis como danos ecológicos não em razão de um critério funcional como a gravidade da lesão mas atendendo a outros – é o caso da eliminação dos últimos exemplares de uma espécie em vias de extinção uma vez que o desaparecimento súbito, pelo reduzido número da sua população, já não condicionaria ou afectaria o meio ambiente[12].

V. A utilidade deste binómio das lesões ambientais levanta ainda mais dúvidas se atentarmos no facto de que o quadro normativo vigente e aplicável a este problema parece ignorar por completo esta equação – veja-se, por um lado, a Directiva 2004/35/CE, que faz referência apenas a “danos ambientais” no artigo 2.º/1 alíneas a) a c) e no artigo 2.º/2 a um conceito mais lato de “danos”, e no artigo 3.º/1 alíneas a) e b) estabelece o seu âmbito de aplicação relativamente aos danos ambientais provocados pelas actividades enumeradas no Anexo III ou diferentes; e, por outro, no Decreto-Lei n.º 147/2008 de 29 de Julho que a transpõe para a ordem jurídica portuguesa o artigo 2.º/1 e o número 2.º, que exclui do conceito de danos ambientais lesões provocadas por causas específicas, e o artigo 11.º/1 alíneas e), i) a iii). É incontornável a pergunta: fará sentido, em última análise, proceder a tal distinção quando a lei não o faz? A resposta é contudo afirmativa: apesar de tanto a Directiva como o Decreto-Lei n.º 147/2008 utilizarem apenas as locuções “danos ambientais” e não fazerem qualquer alusão a danos ecológicos, uma leitura atenta dos preceitos mencionados mostrará que ambos se referem, na verdade, ao conceito de danos ecológicos acima desenvolvido – em termos simples, o que a doutrina chama de danos ecológicos a lei apelida de danos ambientais. O sentido da divisão das lesões ambientais lato sensu em danos ambientais e danos ecológicos explica-se pelas significativas especificidades que estes últimos apresentam na sua imputação[13] e na posterior reparação ou eliminação[14]: quanto à imputação veja-se, por exemplo, as singularidades do regime do nexo de causalidade que liga o facto à lesão ou dano no artigo 5.º do Decreto-Lei; relativamente à gestão do dano é de notar, por um lado, que a lógica de prevenção é muito forte[15] ao permitir a adopção das respectivas medidas na presença de uma mera ameaça nos termos do artigo 14.º, por outro, que na reparação dos danos ecológicos a primazia é dada à modalidade da reparação in natura – vejam-s os artigos 15.º e 16.º do Decreto-Lei - em concreto à restauração ecológica, que consiste na reabilitação do componente ambiental lesado, ou à compensação ecológica, que se destina a criar ou aumentar a função de outros elementos ambientais por forma a colmatar a insuficiência do componente lesado[16].

IV. Como conclusão desta breve reflexão é possível sumariar as seguintes ideias: i) é desde logo útil procurar conceitos normativos, de natureza aberta mas operativa, que permitam o acesso a institutos que, embora conheçam conformações e concretizações diferenciadas, são transversais no espaço da juridicidade – é o caso do dano para a responsabilidade; ii) a protecção dos bens jurídicos pelo Direito pode ser conseguida por duas formas: a individualização e atribuição dos mesmos a pessoas ao permitir o seu aproveitamento directo com algum grau de exclusividade através de permissões normativas específicas – os direitos subjectivos; não sendo possível essa individualização ou aproveitamento (como é o caso do meio ambiente considerado como sistema em que interagem diferentes componentes) a tutela é conseguida de forma objectiva, através de normas de conduta, proibitivas ou impositivas, que no fundo se destinam a impedir comportamentos lesivos desses bens – por exemplo os interesses reflexamente protegidos; iii) a distinção feita pela doutrina entre danos ambientais e danos ecológicos, diferenciação que não é colhida pelo legislador, explica-se por duas ordens de razões: em primeiro lugar era necessário destacar os danos ecológicos dos restantes quer pelas suas especificidades próprias enquanto danos, quer pela singularidade da responsabilidade ambiental nos seus pressupostos e nos seus modelos de imputação desses danos; em segundo lugar ela apresenta virtualidades expositivas e pedagógicas quer quanto à explanação da natureza dos diferentes danos, quer no que toca ao estudo e compreensão dos diferentes bens jurídicos-ambientais em jogo; iv) a problemática dos danos ecológicos e da sua reparação constitui um espaço propício à concretização de princípios referenciais como, por exemplo, o princípio da precaução, da prevenção, do poluidor pagador e da correcção na fonte – bem como uma manifestação da “principialidade” do Direito do Ambiente.




[1] Conceber um ramo de Direito, independentemente do grau de especialidade que apresente relativamente a outros, que desconsiderasse por completo a problemática da imputação de danos aos bens jurídicos que tutela seria tarefa hercúlea cujos processos assumiriam contornos esfíngicos relativamente à sua compreensão. MENEZES CORDEIRO, por exemplo e quanto ao Direito Civil, enquadra a matéria na categoria dogmática dos “institutos jurídicos”- conjuntos concatenados de normas e princípios, que se explicam pelas insuficiências de uma doutrina geral baseada apenas nestes, orientados à criação de modelos de decisão – vide, no seu Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Tomo I, reimp. 3.ª ed., Almedina, 2007 as págs. 365 e ss. e 419 e ss.
[2] Excepcionando aquele que se considera o princípio geral, e concretizador de justiça distributiva, de suportação do dano pela esfera onde ocorra – ubi commoda, ibi incommoda – isto é, fazer correr os riscos das vantagens por quem beneficia das mesmas. Sobre o tema da imputação de danos vide, por todos, MENEZES CORDEIRO, ob. cit., pp. 419-421. Sobre o  problema da justiça distributiva como modelo social no campo da filosofia moral e política vide, do incontornável JOHN RAWLS , A Theory of Justice, ed. revista da de 1971, The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, pp. 228 e ss.
[3] Em concreto a Directiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004 e o Decreto-Lei n.º147/2008 de 29 de Julho.
[4] Nesta matéria segue-se de novo, e como não podia deixar de ser, o entendimento de MENEZES CORDEIRO - Tratado…, Vol. II, Tomo III, Almedina, 2010, pág. 511.
[5] Parece ser este o entendimento de VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1996, pp. 217 e ss. bem como o de HELOÍSA OLIVEIRA, A Reparação do Dano Ecológico, 2010, pág. 8: o de que, em última análise, se trata de uma diferença quantitativa e não qualitativa, de conteúdo e não de estrutura. Numa metáfora algo ilustrativa a contraposição pode explicar-se através de duas imagens: na primeira um foco directo de luz - uma lanterna, por exemplo – incide sobre um objecto, permitindo a sua apreensão pela visão humana; noutra a luz não é apontada directamente ao objecto mas sim a um espelho que “reflecte” a sua imagem – nestes casos a fonte da luz não é directa mas sim reflexa.
[6] No mesmo sentido CUNHAL SENDIM, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos in Cadernos do CEDOUA, Almedina, 2002, pp. 29 e ss.
[7] Assim depõem, por exemplo, VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002, pp. 25 e ss.; CUNHAL SENDIM, ob. cit. pág. 30.
[8] Rejeitando a tese subjectivista refere CARLA AMADO GOMES que “não descurando o carácter apelativo da ideia, deve sublinhar-se que tal noção é juridicamente inócua (porque vazia) e axiologicamente ambígua (dado que assenta em pressupostos incorrectos). Na perspectiva jurídica, é imprestável, pois não ganha autonomia relativamente aos direitos pessoais ou patrimoniais. Do ponto de vista axiológico, é enganosa, uma vez que induz o sujeito na convicção de livre disponibilidade e egoística fruição de um bem do qual não dispõe livremente, porque não lhe pertence. ” in Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2012, pág. 31.
[9] HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág. 9.
[10] ANA PERESTRELO OLIVEIRA, Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental, Almedina, 2007, pág. 13; CUNHAL SENDIM, ob. cit., pág. 37; HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág. 6.
[11] HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág. 10.
[12] HELOÍSA OLIVEIRA, ob. cit., pág. 12.
[13] CARLA AMADO GOMES, A Responsabilidade Civil por Dano Ecológico – Reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL 147/2008, de 29 de Julho in O direito, A. 141, n.º1, 2009, pp. 240 e ss. bem como CUNHAL SENDIM, ob. cit., pp. 39 e ss. Sobre o tema da responsabilidade civil ambiental como tipo singular de imputação de danos ainda mais singulares vide TIAGO ANTUNES, Da Natureza Jurídica da Responsabilidade Ambiental in Temas do Direito do Ambiente, n.º 6, Coimbra, 2011, pp. 137 e ss, em particular sobre as especificidades dos pressupostos ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade…, passim, e A Prova do Nexo de Causalidade na Lei da Responsabilidade Ambiental in Temas…, pp. 97 e ss.
[14] Sobre o problema vide, entre outros, HELOÍSA OLIVEIRA, A Restauração Natural no Novo Regime Juridico de Responsabilidade Civil por Danos Ambientais in Temas…, pp. 117 e ss. e CARLA AMADO GOMES, O Regime de Prevenção e Reparação do Dano Ecológico: Algumas Questões in Direito do Urbanismo e do Ambiente: Estudos Compilados, 2010, pp. 345 e ss.
[15] Estando a responsabilidade ambiental no coração do Direito do Ambiente não é de admirar a preponderância que os princípios da precaução e da prevenção assumem no seu âmbito – mais ainda atentas as dificuldades intrínsecas à reparação de danos ecológicos. A bibliografia sobre estes princípios é extensa, podendo referir-se, a título exemplificativo, ALEXANDRA ARAGÃO, Dimensões Europeias do Princípio da Precaução, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, A. 7, n.º especial, 2010, pp. 245 e ss., JAMES CAMERON/JULI ABOUCHAR, The Precautionary Principle: A Fundamental Principle of Law and Policy for the Protection of the Global Environment in Boston College International and Comparative Law Review, Vol. 14, Issue 1. Sobre estes princípios mas com uma postura particularmente crítica relativamente à utilidade da autonomização do princípio da precaução vide CARLA AMADO GOMES, Introdução…, pp. 68 e ss.
[16] HELOÍSA OLIVEIRA, A Restauração…, pp. 119-121. A compensação pecuniária é também uma forma de “reparação” dos danos ecológicos – mas face à natureza dos bens em questão, à importância de procurar sempre que possível a sua reparação in natura e às características específicas dos agentes lesivos mais frequentes assume menos importância em sede de responsabilidade ambiental.

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