A responsabilidade
civil por dano ecológico
A reparação de uma ofensa ambiental
opera pela via da responsabilidade civil.
Num domínio em que a prevenção deve
constituir a regra de ouro de acção – e que se traduz no princípio da proibição
sob reserva de permissão de todas as actividades que possam causar impactos
significativos no ambiente - , conceder relevo ao instituto da responsabilidade
civil pode parecer assim contraproducente. A ênfase deve sim ser dada à
evitação (ou minimização) do dano, e não à sua reparação. A directiva
2004/35/CE, do Parlamento e do Conselho, de 21 de Abril, sobre o regime da
responsabilidade civil por dano ecológico invoca, a par do princípio do
poluidor-pagador, o princípio da prevenção como fundamento do quadro
regulatório instituído. Este princípio visa traduzir o desgaste provocado por
impactos de certas actividades especialmente poluentes em contrapartidas,
nomeadamente fiscais, ou seja, quem polui acima de um nível tolerável, paga por
esse desgaste que a sua actividade provoca em bens colectivos[1].
Esta dimensão preventiva da
responsabilidade aproxima-se de uma corrente que pretende transformar a
responsabilidade intergeracional de imperativo ético em imperativo jurídico.
Tal transformação irá passar por uma distensão do conceito clássico de
responsabilidade civil, fazendo desta um instrumento conservatório do status quo ecológico, operacionalizado
através do princípio da gestão racional dos recursos naturais. Esta
chamemos-lhe mutação do instituto, corresponderia a uma terceira geração da
responsabilidade civil, que teria começado por ser uma responsabilidade-sanção, até ao século XIX (centrada no agente do
dano e sua penalização), para passar para um patamar de responsabilidade-indemnização, no século XX (centrada no agente do
dano e sua penalização), até alcançar um nível de responsabilidade-antecipação, no século XXI (fundada na prevenção
de riscos maiores e no intuito de preservação do património ecológico,
bioético, cultural, tendo em consideração o legado a deixar às gerações
futuras)[2].
Com efeito, o instituto da
responsabilidade civil tem sido alvo de vários desafios pelo Direito do
Ambiente. Enquanto património comum do
Direito, a responsabilidade civil recebe, neste domínio, particulares
propostas aplicativas, que envolvem desde o objecto (bens inapropriáveis),
passando pelo sujeito (uma “vítima” sem lesão), continuando pela actualidade da
lesão (há quem fale em “dano futuro”[3])
e pelos métodos de cálculo (em razão da imaterialidade da dimensão puramente
ecológica dos bens), enfim, inovando também no tipo de interesses entrecruzados
(dano ambiental; dano moral ambiental; dano a gerações futuras).
Na visão tradicional, a
responsabilidade vai pressupor um dano actual. Pode vir a acontecer que o
cálculo do dano só seja plenamente apurável num momento posterior ao trânsito
em julgado da sentença condenatória de agente, mas o facto lesivo já aconteceu
(art. 564.º/2 do Código Civil, doravante CC). O Direito do Ambiente acolhe esta visão
tradicional - no DL 147/2008, de 29 de Julho,
regime de prevenção e reparação do dano ecológico (RPRDE)[4]–
mas acrescenta-lhe uma outra dimensão, que surge em virtude da necessidade de
harmonizar o interesse na preservação do património ambiental, em especial a
biodiversidade, com a dinâmica sócio-económica das comunidades humanas
(responsabilidade ex ante).
A responsabilidade ex ante e compensação ecológica:
A compensação é uma modalidade de
reparação do dano contemplada no instituto da responsabilidade civil. Trata-se
de um sucedâneo ou complemento da restauração in natura, que actua quando esta não é fáctica ou economicamente
possível (por excessivamente onerosa), ou quando é insuficiente (art. 566.º/1,
1ª parte, do CC). Se a responsabilidade civil tem uma dupla função, reparatória
e penalizadora, o que se pretende é tornar indemne uma esfera jurídica que
sofreu uma lesão, deixando-a o mais próximo possível do estado em que se
encontrava quando a lesão ocorreu e onerando patrimonialmente o lesante. No
Direito Civil, a compensação prevista no artigo 566.º traduz-se num equivalente
pecuniário e pode, teoricamente, despontar em qualquer hipótese de ano, quer de
bens fungíveis quer de bens infungíveis. No Direito do Ambiente, o artigo 48.º
da LBA (Lei de Bases do Ambiente), traça uma hierarquia de soluções similar:
restauração in natura, com reposição
do estado anterior à infracção “ou equivalente”; ressarcimento pecuniário,
quando não for “possível” a restauração natural, em montante a definir em lei
especial. Deve observar-se que a LBA lida com um conceito de dano amplo (art.
40.º LBA).
A lógica primeira e desejavelmente
única do Direito do Ambiente deveria ser a da prevenção, é ela que se destaca
no elenco das tarefas de protecção do ambiente prescritas no artigo 66.º/2 da
CRP, logo na alínea a), como é ela que tem a primazia na lista de princípios
apresentados na LBA, no artigo 3.º/a). Contudo, porque numa sociedade altamente
industrializada, os danos ao ambiente são inevitáveis, a responsabilização
teria identicamente que constar da pauta de princípios orientadores – como
consta, efectivamente, no fecho do artigo 3.º da LBA (alínea h) e também, ainda
que não da forma mais clara, no artigo 52.º/3 da CRP. O RPRDE, transpondo a
directiva 2004/35/CE, veio dar operacionalidade à noção de dano ecológico,
assentando, precisamente, na dupla vertente prevenção/reparação deste.
É deste diploma que resulta a
metodologia da reparação do dano ecológico, dano que se há de traduzir numa 1)
alteração 2) significativa 3) adversa 4) mensurável do estado de um componente
ambiental ou redução da sua aptidão para gerar “serviços” (art. 11.º/d/e) do
RPRDE).
Do RPRDE resulta aparentemente a
abolição da compensação pecuniária e a introdução de uma nova técnica de
compensação, por recuperação de componentes ambientais equivalentes. O RPRDE
introduz a noção de perdas intermédias, para colmatar as quais avança a figura
da reparação compensatória, cuja implementação viabiliza uma reparação
verdadeiramente integral do dano ecológico, não se bastando com a ficção de uma
restauração natural cujos efeitos, em bom rigor, se projectam para um futuro
reconstruído ao ritmo da natureza.
A lógica subjacente ao novo regime
assenta, entre outros pressupostos, na existência de um dano, iminente ou já
verificado, proveniente de uma actividade se não forçosamente industrial, pelo
menos com um determinado nível de complexidade e continuidade (art. 2.º/1, 14.º
e 15.º do RPRDE). O dano, quando iminente,
deve assumir um grau de verosimilhança e de probabilidade consistente,
que justifique a adopção de medidas preventivas (art. 5.º RPRDE). A iminência
não é caracterizada, mas a ratio do
diploma aponta para que se trate de ameaças de dano provocadas por eventos
inesperados (ainda que contidos dentro do âmbito de risco potencial da
actividade), ou seja, cuja eclosão está fora do controlo do operador[5].
Temos uma diferença entre a
compensação de um dano no âmbito do RPRDE – um dano efectivo, decorrente de um evento
indesejado pelo operador, embora resultante da sua actividade económica – e
o dano, actualmente previsível e
decorrente de uma intervenção desejada pelo
seu autor, subjacente ao regime previsto no RJRN, bem como ao regime jurídico
de conservação da Natureza e da biodiversidade (DL 142/2008, de 24 de Julho =
RCNB). Interessam para esta situação as medidas elencadas nos artigos 10.º/12
do RJRN e 36.º do RCNB, que são desenhadas em função de um dano à biodiversidade[6]
(espécies e habitats protegidos) ainda não verificado, embora inevitável, em
razão da intervenção programada.
Pergunta-se se a esta dualidade de
momentos de aplicação do instituto corresponderão diversos fundamentos. O
fundamento da compensação ex post, determinada na sequência de um dano,
reconduz-se inquestionavelmente ao princípio sa responsabilização, plasmado no
artigo 3.º/h) da LBA. Os bens ambientais são bens de fruição colectiva, metaindividuais
e metageracionais – afectação da sua integridade, no sentido da destruição ou
degradação, ainda que de difícil quantificação, não pode nunca ficar impune. O
lesante deve então reconstituir in natura
a situação que existiria à data da lesão ou, não sendo tal possível, compensar
por equivalente.
Na compensação ex ante, em contrapartida, o dano não se consumou ainda, mas o
plano da intervenção projectada permite aferir a sua inevitabilidade e estimar
a sua intensidade. O futuro lesante vê-se, portanto, obrigado a compensar na
medida do dano que virá a produzir, uma vez que a reconstituição natural fica,
por definição, afastada. Se é certo que a fixação das medidas compensatórias
constitui cláusula modal do acto autorizativo, também é verdade que a sua
implementação será preferencialmente contemporânea da verificação do dano.
O princípio da responsabilização
parece, assim, constituir identicamente o fundamento da compensação ex ante, uma vez que quando a medida
compensatória se materializa, o dano terá até já ocorrido ou estará em curso.
Embora o RCNB autonomize um princípio de compensação (art. 4.º/d),
identificando-se esta com a hipótese plasmada no artigo 36.º do mesmo diploma,
não se vislumbra aqui qualquer diferença do princípio da responsabilização. A
unicidade do fundamento recomenda a unificação do regime[7],
que passa pela aplicação analógica dos critérios do Anexo V do RPRDE à fixação
de medidas compensatórias em sede de compensação ex ante[8],
sem esquecer a articulação com as Guidelines
da Comissão, de 2007[9],
sobre a aplicação so artigo 6.º/4 da directiva 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de
Maio, com alterações, sede da figura da compensação ecológica no ordenamento
jurídico europeu[10].
Compensação ambiental e solidariedade intrageracional:
Diferentemente, se considerarmos um
tipo de compensação próxima, traduzida em contrapartidas às comunidades que
sofram especialmente com a instalação de determinadas infraestruturas na sua
circunscrição, provavelmente o fundamento filiar-se-à noutro princípio. Estamos
a referir-mo-nos às situações em que a “qualidade de vida” de uma colectividade
fica consideravelmente diminuída – do ponto de vista da qualidade do ar, da
água, da quantidade de espaços verdes – em virtude da implantação de um parque
industrial, de uma estação de tratamento de resíduos, de uma central nuclear. O
dano aqui não é ecológico, é sanitariamente humano, e a sua contabilização é
tendencialmente impossível, pelo carácter difuso que reveste. Tratar-se-á
nestes casos de fazer valer o princípio da solidariedade intrageracional,
compensando um determinado grupo de pessoas pela redução da sua qualidade de
vida a favor da colectividade nacional (e mesmo da local, pois estes
investimentos geram normalmente emprego e dinamizam o comércio local).
Este desgaste do meio ambiente humano
deverá então ser compensado, se especial e anormal, por apelo à noção de
compensação por facto lícito (art. 16.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro). De
qualquer das maneiras, o modelo preferencial deverá ser antecipatório e não
ressarcitório, operacionalizado através de contrapartidas impostas aos
operadores económicos ou aos poderes públicos responsáveis pelas
infraestruturas que provocarão o desgaste “ambiental”. A contrapartida da
redução de índice de qualidade (de bem estar, em geral, e sanitária, em
particular) deve ser consensualizada entre os investidores e as entidades
locais, sob supervisão da autoridade central autorizante, com a participação
efectiva das populações, e traduzida em equipamentos sociais como creches,
lares de terceira idade, pavilhões gimnodesportivos, parques de recreio; na
ausência de acordo, deveria ser calculada uma percentagem sobre o investimento
a reverter para os municípios, obrigatoriamente afecta à criação de equipamentos
como os descritos e sempre após audição das populações.
Esta lógica de redistribuição dos
dividendos dos grandes industriais e comerciantes desde logo a favor dos grupos
sociais mais directamente afectados pelos empreendimentos, se realizada ex ante, tem um fundamento fiscal, num
princípio do poluidor-pagador que entronca numa lógica de solidariedade
intrageracional e de repartição dos encargos públicos, semelhante (mas não
idêntica) aos mecanismos de perequação compensatória existentes em Direito do
Urbanismo (art. 122.º do RJIGT) e em sede de Reserva Ecológica Nacional (art.
34.º do DL 166/2008, de 22 de Agosto).
Bibliografia:
Carla AMADO GOMES, Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL,
2012, pp. 181 segs.
Carla AMADO GOMES, De que falamos quando falamos de dano
ambiental? Direito, mentiras e crítica, in
Textos dispersos de Direito do Ambiente, III, Lisboa, 2010, pp. 331 segs.
Carla AMADO GOMES, A responsabilidade civil extracontratual
das entidades públicas e a responsabilidade civil por dano ecológico:
sobreposição ou complementaridade, in RM,
nº 125, 2011, pp. 147 segs.
Carla AMADO GOMES e Luis BATISTA, A biodiversidade à mercê
dos mercados? Reflexões sobre compensação ecológica e mercados de biodiversidade,
em curso de publicação na revista O
Direito.
[1] António
LEITÃO AMARO, Tal pai tal filho: os caminhos cruzados do princípio do
poluidor-pagador e da responsabilidade ambiental, in RJU, nºs 23/24, pp. 9
segs.
[2]
Catherine THIBIERGE, Avenir de la responsabilité, responsabilité de l’avenir,
2004/9, pp. 577 segs.
[3] Délton
WINTER DE CARVALHO, Dano ambiental futuro, Rio de Janeiro, 2008.
[4] Alterado
pelos DLs 245/2009, de 22 de Setembro, e 29-A/2011, de 1 de Março.
[5] Guia
para a Avaliação de Ameaça Iminente e Dano Ambiental, elaborado pela APA,
Outubro de 2011, pp. 15 segs.
[6] Heloisa
OLIVEIRA, O dano à biodiversidade: conceptualização e reparação, in Direito e
Biodiversidade, coor. de Carla Amado Gomes, Curitiba, 2010, pp. 149 segs.
[7]
Desenvolvimento sobre o regime das medidas de compensação ex ante, Carla AMADO
GOMES e Luis BATISTA, A biodiversidade à mercê dos mercados?..., cit, ponto
1.2.2..
[8] Carla
AMADO GOMES e Luis BATISTA, A biodiversidade à mercê dos mercados?..., cit,
ponto 1.2.2.1..
[9] Guidance document on Article 6(4) of the “Habitats Directive”
92/43/EEC – Clarification of the concepts of: alternative solutions, imperative
reasons of overriding public interest, compensatory measures, overall
coherence: Opinion of the Commission, January 2007.
[10] O
instituto da compensação ecológica surge com a Convenção de Ramsar, assinada em
1971.
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