I. A actualidade de um problema
A protecção do ambiente como problema
social ou questão política é uma realidade recente, encontrando-se o seu
surgimento conectado com o despelotar da crise do modelo de Estado-Social, no
final dos anos 60[1].
De facto, se o Estado de Providência
atravessou os denominados "30 gloriosos anos" embalado na ilusão do
crescimento económico inevitável e imparável, assente no paradigma Keynesiano
de recurso à despesa pública e intervenção Estadual, de modo a expurgar as
falhas de mercado, o tempo acabaria por deitar por terra esse sentimento de
inevitabilidade e imparabilidade de um crescimento económico quase que ad
eternum, levando assim ao despelotar da crise do Estado social e ao
questionar dos seus pilares mais basilares, por inúmeros movimentos sociais,
culturais e políticos então surgidos.
Viria a ser justamente assim que, nos
finais dos anos 60, a questão ambiental viria a ser trazida a palco,
principalmente, pela mão de determinados movimentos de contestação como o
movimento de Maio de 68, a revolução hippie,
o pacifismo e a doutrina do flower-power.
A problemática da protecção ambiental,
absolutamente desconhecida do Estado Social, apenas viria a ser agudizada
durante o decorrer da década de 70, ainda para mais, com o despelotar da
denominada crise do petróleo.
Assim se nos finais dos anos 60, com o
ínicio da crise do Estado de Providência, qual "polvo de mil
tentáculos" na formulação de BOBBIO[2], se
adquiriu consciência dos limites do crescimento económico, com a chegada dos
anos 70 e a respectiva crise petrolífera deu-se a tomada de consciência da
esgotabilidade dos recursos naturais. Encontrou-se aí a génese da necessidade
de encarar a protecção ambiental como um problema social que carecia de solução
política.
Embora, na sua génese, tenha surgido
associada a movimentos radicais, a consciência ecológica viria a generalizar-se
e a deixar de ser apenas a bandeira de determinados grupos, para passar a ser
encarada como um verdadeira problemática social, o que potenciou um
considerável desenvolvimento das ciências do ambiente, das políticas de
protecção ambiental, bem como de legislação em matéria de ambiente.
Do exposto, retira-se ser hoje a tutela
ambiental matéria de plena actualidade e relevância, bem como temática
relativamente à qual a ciência do Direito não pode deixar de ter uma palavra a
dizer.
II. O auxílio do Direito na protecção do
Ambiente
Neste campo, parece a dimensão jurídica
da tutela ambiental ser susceptível de colocação em dois planos distintos: i)
um plano subjectivo, construindo o direito ao ambiente como direito do homem
que se integraria na terceira geração de direitos fundamentais; ii) um plano
objectivo, colocando a protecção do ambiente como problema e tarefa do Estado,
o que justifica que alguns autores qualifiquem o actual Estado pós-social como
Estado de Ambiente;
Atendendo a estas duas vias jurídicas de
tutela ambiental, importa desde já salientar não serem elas incompatíveis entre
si. Pelo contrário, parecem surgir ambas como caminhos necessários de
calcorrear, em nome da máxima optimização dos níveis de protecção do ambiente.
Como uma clara confirmação da ideia
contida no parágrafo supra, surge-nos a Constituição da República
Portuguesa de 1976, na qual se encontra, presentemente, consagrada a tutela do
ambiente, quer como tarefa fundamental do Estado (art.9º/d)e e)), numa dimensão
objectiva; quer como pretenso direito fundamental, concebido por parte da
doutrina como um direito subjectivo[3], no
art. 66º/1, numa dimensão subjectiva.
Tal como foi afirmado, a ideia desta
dupla natureza do direito ao ambiente como direito subjectivo e como estrutura
objectiva da colectividade não surge como incoerente ou incompatível em si
própria.
Pelo contrário, afigura-se útil. Isto,
porque uma coisa é a cristalização de uma tarefa estadual, neste caso, o
estabelecer enquanto tarefa fundamental por parte do Estado a defesa da
natureza e do ambiente, pelo evidente interesse público que existe nessa
tutela. Outra, é não só assumir que existe a necessidade de tutelar um
determinado bem, mas também conferir aos particulares tutela subjectiva perante
agressões contra esse bem, cuja necessidade de proteger foi consagrada.
Assim, se por um lado a consagração da
defesa do ambiente e da natureza enquanto tarefa estadual, parece conferir aos
particulares a faculdade de exigir do Estado, na medida que lhe seja possível,
que, efectivamente, desenvolva mecanismos de protecção do meio ambiente[4]; por
outro lado, a consagração de um direito subjectivo ao ambiente fundamenta que
um particular possa requerer tutela per si e directamente perante
qualquer entidade pública ou privada que perturbe, utilizando os termos
empregues na lei fundamental, o seu direito a um ambiente de vida humano, sadio
e ecologicamente equilibrado[5].
Demonstrada que se crê estar a complementariedade
e necessidade desta dupla natureza do direito do ambiente de revestir quer um
lado de protecção objectiva, quer um outro de protecção subjectiva, cumpre
avançar, de modo a nos debruçar-mos sobre a verdadeira problemática que
pretendemos aqui discutir.
Assim sendo, uma questão urge colocar-se:
embora se reconheça a necessidade e vantagens de uma protecção subjectiva do
ambiente, será efectivamente possível falar num direito ao ambiente? Isto é,
será o direito ao ambiente consagrado no art. 66º/1 da CRP um direito
fundamental, configurável enquanto direito subjectivo?
III. O art. 66º/1 da CRP e o Direito ao
Ambiente
Tal como refere VASCO PEREIRA DA SILVA[6], a
questão perante a qual nos encontramos depende tanto de opções do legislador
constituinte, como da concepção adoptada, ampla ou restrita, em matéria de
posições subjectivas constitucionalmente fundadas.
Deste ponto de partida, retira de seguida
o ilustre autor ter o legislador constituinte se pronunciado inequivocamente no
sentido de considerar o direito ao ambiente como um direito fundamental.
De facto, parece, desde já, ser neste
ponto perfeitamente admíssivel mostrar concordância com esta ideia, até porque
no próprio art. 9º da CRP, relativo às tarefas fundamentais do Estado, a tutela
do ambiente é mencionada duas vezes. Uma na al. e) onde parece estar salientada
uma dimensão objectiva da tutela do ambiente. Outra na al. d) onde já aí surge
uma referência, a par de outros direitos, a "direitos ambientais".
Por fim, o próprio art. 66º/1 parece ter uma redacção inequívoca no sentido de
conferir um direito.
Naquilo que, por sua vez, diz respeito à
segunda variável identificada de que depende a questão em foco, trata-se de
saber se estamos perante um verdadeiro direito fundamental ou perante uma
tarefa estadual disfarçada.
Também aqui surge como interessante a
posição assumida por VASCO PEREIRA DA SILVA, ao afirmar que os direitos
fundamentais radicam num príncipio axiológico permanente e absoluto - a
dignidade da pessoa humana; porém, possuem também uma história - a da sua
concretização em diferentes momentos e em diferentes sociedades.
No desenvolvimento desta ideia, procede o
autor a uma breve resenha histórica relativa aos direitos fundamentais, de modo
a demonstrar que esses não se limitam a ser meros direitos de defesa, podendo
envolver também uma dimensão positiva[7]. Em
comum teriam assim estes direitos um duplo fundamento: i) axiológico, que é a
dignidade da pessoa humana; ii) dogmático, resultante da evolução histórica
pela qual passou a noção de direitos fundamentais, bem como o seu modo de
realização pelos poderes públicos;
De seguida, procura o autor responder a
nova questão: será o direito ao ambiente um direito subjectivo? Chegado a este
ponto, salienta a dupla natureza dos direitos fundamentais, quer enquanto
direitos subjectivos de defesa dos particulares, quer enquanto estruturas
objectivas da comunidade, compreendendo aqui uma dimensão positiva.
Depois, conclui que esta dupla dimensão é
comum a todos os direitos, pois aquilo que poderá apresentar variações entre
eles será o predomínio ou da vertente positiva ou da vertente negativa,
realçando de seguida que a ideia de que os direitos fundamentais possuem
natureza de direitos subjectivos tem encontrado alguma resistência na nossa
doutrina, procedendo de seguida ao avanço de diversos argumentos com o
propósito de rebater essa resistência[8].
Procurando aliar a clareza à síntese,
diga-se que para a resolução desta problemática o que importa em primeiro lugar
é definir o que se entende por direito subjectivo, nessa medida, e considerando
a noção avançada pelo autor em menção como uma noção operativa, será: uma
posição substantiva de vantagem, destinada à satisfação de interesses
individuais.
Ora, em última medida a pedra basilar do
conceito de direito subjectivo é a posição de vantagem de um sujeito que lhe é
conferida pelo ordenamento jurídico. Quanto aos direitos fundamentais, estes,
em última análise, pretendem todos conferir ao particular uma determinada
posição de vantagem, com um maior conteúdo negativo ou positivo, é certo, mas
sempre uma posição de vantagem.
Como consequência do exposto, acredita-se
estar a razão com VASCO PEREIRA DA SILVA[9] ao
considerar ser preferível proceder ao tratamento unificado dessas posições
substantivas de vantagem (advenientes dos direitos fundamentais) no
conceito-quadro de direito subjectivo.
Ainda ancorado a esta linha de raciocínio qualifica o autor em menção o
direito ao ambiente consagrado no art.66º/1 da CRP como um direito subjectivo.
IV. Ainda análise do art.66º/1 da CRP…
Contra o entendimento referido supra,
vem CARLA AMADO GOMES[10]
alertar para o pretenso equívoco do direito subjectivo ao ambiente, procurando
proceder à desmontagem da fórmula presente no art. 66º/1 da CRP.
Nesse sentido, afirma a autora ser a
fórmula do preceito constitucional em causa juridicamente inócua e
axiologicamente ambígua. Esta ideia parece ganhar força quando se olha para um
argumento que parece surgir como basilar para esta tomada de posição: a ideia
de que a fórmula do direito ao ambiente se move em torno da pessoa e das suas
necessidades, físicas, psíquicas, de bem estar sanitário e económico.
Assim, o objecto do direito ao ambiente,
nas palavras da autora, enquanto
reportado a uma substancialidade material
não existe: é uma ficção jurídica, constitui uma espécie de testa de
ferro, inútil e perversa, de posições jurídicas perfeitamente autonomizadas
como o direito à vida, à integridade física e psíquica, ao desenvolvimento da
personalidade, à propriedade. A inutilidade traduzir-se-ia assim na
duplicação de bases de protecção jurídica da pessoa e da sua esfera jurídica.
V. Tomada de posição
Avançados que estão os dados a favor e
contra esta concepção subjectiva de tutela ambiental cumpre tentar tomar
posição.
Importa desde já salientar que não se
pode concordar com o argumento de que o direito ao ambiente consagrado no
art.66º/1 CRP seria inútil por se traduzir numa duplicação de bases de
protecção jurídica da pessoa e da sua esfera jurídica, pelo menos quando
avançado sem algo mais.
O direito visa, em última instância
regular situações fácticas, sendo de aplicar uma determinada norma de um
ordenamento jurídico quando se verifica uma situação de facto que preenche a
previsão dessa mesma norma. Por sua vez, as normas constitucionais são, em
termos algo simplistas, as normas fundamentais de uma determinada comunidade
política.
Assim, por exemplo, no art. 1º da CRP
consagra-se a dignidade da pessoa humana. Sendo essa aí consagrada e supondo-se
que não se encontrava na CRP preceito semelhante ao art.13º seria de supôr que
no caso de promulgação de legislação ordinária relativa a uma determinada
matéria que contivesse normas que atentassem contra o princípio da igualdade,
essas mesmas normas, mesmo na ausência de um preceito semelhante ao art.13º,
fosse susceptível de ser declarada incostitucional, pois, em última análise,
violaria o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no art.1º da CRP.
Ou seja, o que com isto se pretende
demonstrar é que de um preceito legal se pode retirar mais do que uma norma,
tal como é o caso, por exemplo, do art. 1º da CRP. Assim sendo, crê-se que, no
fundo, todos os direitos fundamentais consagrados na CRP acabam por ser
densificações e concretizações dos princípios fundamentais do Estado de direito
democrático consagrado no art. 1º e segs. da CRP.
O que acaba por levar a que tais direitos
sejam autonomizados e edificados posteriormente num preceito legal próprio
serão, no fundo, razões de clareza e segurança jurídica. Logo, aqui chegados a
questão que se tem de colocar é: existem razões e alicerces suficientes para
que se autonomize o direito ao ambiente?
Bom, cabe salientar, tal como se referiu
logo nos primórdios deste texto, que a relevância actual da necessidade de
tutela do ambiente é considerável, em nome de um ambiente ecologicamente
equilibrado e de um desenvolvimento sustentável. Em adição a isso, e tal como
também já se fez alusão, não se pode negar que a protecção objectiva e
subjectiva do meio ambiente não são antagónicas, sendo, ao invés, muito
desejável uma conciliação entre ambas.
Face ao exposto, e numa primeira vista, a
leitura de que o art. 66º/1 da CRP contém um direito subjectivo ao ambiente
parece ser acertada, não só em sede de interpretação literal do preceito, mas
também enquanto mecanismo de potencialização da eficácia da tutela ambiental.
VI. A dificuldade de determinação do
objecto do direito ao ambiente
Todavia, é necessário desbravar um pouco
mais esta questão. Nomeadamente, cabe determinar o objecto do direito ao
ambiente. E é justamente nesta demanda que a posição que tem por paladino VASCO
PEREIRA DA SILVA esmorece, isto porque, como bem refere CARLA AMADO GOMES[11], a
fórmula do direito ao ambiente move-se em torno da pessoa e das suas
necessidades, físicas e psíquicas, de bem estar sanitário e económico.
Ou seja, tal como afirma CARLA AMADO
GOMES, o objecto do direito ao ambiente enquanto reportado a uma
substancialidade material não existe. Isto porque, quando falamos em ambiente
falamos de um bem insusceptível de apropriação, o que impede assim a sua
consideração como direito subjectivo.
VASCO PEREIRA DA SILVA[12]
tenta rebater este argumento com base nas seguintes considerações:
i) não é o bem ambiente que é
apropriável, antes se trata de considerar que tal bem pode dar origem a
relações jurídicas, em que existem direitos e deveres, decorrentes da sua
fruição individual.
ii) assim sendo, existiria uma protecção
jurídica subjectiva ambiental, decorrente da existência de um domínio
individual constitucionalmente protegido de fruição individual, que protege o
seu titular de agressões ilegais provenientes de entidades públicas e privadas.
iii)
A CRP estabeleceria portanto uma posição substantiva de vantagem que
seria conferida aos particulares para a realização doos seus próprios
interesses e que é de configurar como um direito no âmbito da relação
jurídico-pública de ambiente.
Embora persuasivos estes argumentos
parecem não conseguir alcançar um ponto de importância fulcral, esse ponto é:
uma delimitação autónoma ou clara do objecto do direito ao ambiente.
Neste ponto surge como relevante e
altamente interessante a remissão para a jurisprudência do TEDH em casos de
matéria ambiental, enquanto exemplo do raciocínio a que se pretende chegar[13]. Ora
em casos como Lopez Ostra c. Espanha ou Gounaridis e outros c. Grécia, entre
muitos outros casos susceptíveis de referência verificou-se uma constante: a
protecção indirecta dos direitos humanos ambientais.
Tal situação revela não só que mesmo na
ausência de expressa protecção subjectiva em matéria ambiental os ordenamentos
jurídicos actuais oferecem modos de alcançar essa tutela por outras vias, como
também que uma eventual lesão do bem ambiente que motive o particular a agir
não se manifesta só como lesão do bem ambiente, mas sim, e principalmente, como
uma lesão de bens jurídicos situados na esfera do lesado, como o direito à
integridade física, à propriedade, entre outros.
E a parte final deste último parágrafo é
onde se situa a grande questão que a posição de VASCO PEREIRA DA SILVA não
responde adequadamente, isto porque se no caso do direito à vida ou direito à
propriedade temos um bem jurídico a tutelar perfeitamente bem delimitado e inserido
na esfera jurídica de um particular, no direito ao ambiente teríamos um direito
de extensões indefinidas e isso deve-se ao facto de o bem ambiente ser
insusceptível de apropriação, sendo portanto algo externo à esfera jurídica do
pretenso titular do direito ao ambiente.
Assim, se por exemplo na propriedade,
atendendo ao objecto conseguimos ter plena noção da extensão desse direito, no
que concerne ao bem ambiente, justamente por ser esse um bem colectivo que não
figura, nem pode figurar, ainda que parcelarmente, na esfera de um titular não
conseguimos, atendendo ao objecto, delimitar a abragência desse direito[14].
Do exposto, parece ser de concordar com a
posição de CARLA AMADO GOMES, ao afirmar ser o direito ao ambiente um direito
vazio, visto que, ainda que à primeira vista se afigure útil a ideia de
proteger subjectivamente o ambiente com o conferir de um direito subjectivo a
um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado aos particulares, os fundamentos
de tal ideia acabam por cair por terra depois de uma análise mais profunda, uma
vez que se verifica uma impossibilidade de delimitação do objecto do direito em
causa, por esse incidir sobre um bem insusceptível de apropriação, não sendo
assim possível determinar o quantum de pretenso aproveitamento individual
do bem colectivo.
Em adição ao exposto, cumpra ainda
analisar outro aspecto, tal como já foi referido, a fórmula do direito ao
ambiente consagrada no art. 66º/1 move-se em redor da pessoa e das suas
necessidades, ou seja, se enquanto protecção objectiva e tarefa estadual a
protecção ao ambiente se afigura como um fim em si mesmo, fim esse ditado por
razões de interesse público na preservação ambiental, enquanto protecção
subjectiva, o direito ao ambiente não parece ser mais do que um modo de tutelar
o particular contra uma particular lesão - a lesão ao meio ambiente.
Porém, para essa necessidade de tutela de
um determinado particular se verificar, parece ser necessário de se denotar que
essa lesão ambiental, de algum modo, afecta o particular e isso não se constata
por mera observação da lesão ambiental, uma vez que o ambiente é um bem público
e uma lesão que contra o mesmo seja perpetrada tem potencial para afectar toda
a comunidade e não só um sujeito em particular. Assim, uma lesão ambiental
suficientemente forte para levar o particular a procurar tutela afectará já
direitos subjectivos pertencentes a esse particular, como o direito à
integridade física ou o seu direito de propriedade.
Nessa medida, e com base na violação
desses direitos o particular obteria tutela contra a lesão de que é alvo e o
bem jurídico ambiente seria indirectamente tutelado. Como tal, a consagração
deste direito subjectivo ao ambiente embora parece num primeiro momento útil
acaba por se revelar inútil, até porque, tal como já foi referida, do modo que
está concebida, esta visa tutelar directamente o particular e só indirectamente
o meio ambiente, ora, tal como já se demonstrou, tal tutela indirecta do
ambiente já se conseguiria com recurso aos mecanismos de defesa já existentes
na ordem jurídica pelo que, como clama CARLA AMADO GOMES, estamos perante uma
duplicação inútil.
Em suma, embora se reconheça um sentido
nobre à ideia, não conseguimos aceitar que se fale num direito subjectivo ao
ambiente, com base no art. 66º/1 da CRP, isto porque:
i) A fórmula em causa não consegue
delimitar o objecto do pretenso direito ao ambiente. Ou seja, essa fórmula
parece indiciar uma lógica de aproveitamento individual de um bem colectivo,
porém afigura-se impossível determinar esse quantum de aproveitamento
que pretensamente se atribui a cada um, pelo que a fórmula é vazia e
insusceptível de preenchimento;
ii) O que o legislador constitucional
parece aqui pretender em primeira linha é tutelar o particular contra lesões
ambientais que o afectem. Ou seja, temos em primeiro lugar uma tutela directa
ao particular contra um tipo de lesão e em segundo lugar uma protecção mediata
do bem ambiente. No entanto, o particular já conseguiria essa tutela com
recurso a outras posições jurídicas perfeitamente autonomizadas e a tutela
ambiental indirecta pretendida também seria assim alcançada, pelo que a norma
redunda, de facto, numa duplicação inútil;
VII. Ambiente e dever
As conclusões anteriores podem agora
provocar alguma preplexidade. No fim de contas, admitiu-se em primeira linha
que a protecção objectiva e a protecção subjectiva do meio ambiente não são
ideias incompatíveis entre si, sendo até conciliáveis e desejáveis, enquanto
faces distintas da mesma moeda.
Porém, foi demonstrado acreditar-se ser
impossível autonomizar um objecto concreto para o pretenso direito ao ambiente,
será este o negar da possibilidade de protecção subjectiva ao ambiente?
Dificilmente, de facto, a única coisa que se demonstrou é que neste caso o
caminho dos direitos pode afigurar-se como barrado. Todavia, parece possível e
desejável empreender-se outro trilho em nome da tutela do meio ambiente e da
natureza - esse trilho terá de ser aquele que se descortina da leitura da parte
final do próprio art. 66º/1, o trilho dos deveres fundamentais.
Em nome deste caminho, cumpre, antes de
mais, tecer algumas considerações quanto à natureza dos deveres fundamentais.
Desde logo, e nas palavras de CASALTA
NABAIS[15], os
deveres fundamentais pertencem à "sub-Constituição do indíviduo",
isto é, fazem parte do estatuto constitucional das pessoas (a par dos direitos
fundamentais). Ou seja, a Constituição não confere apenas direitos, estabelece
também obrigações dos particulares, vinculando-os a determinados deveres para
com a colectividade.
Sendo assim, os deveres fundamentais são
deveres que a Constituição impõe aos indíviduos, exigindo-lhes o cumprimento de
determinadas obrigações, em nome da utilidade que dessas advém para toda a
comunidade.
Em adição a isso, e tal como realça TIAGO
ANTUNES[16],
estes deveres não devem ser vistos como meros limites aos direitos
fundamentais, isto porque o seu alcance e as suas consequências ou implicações
ultrapassam uma eficácia meramente restritiva a certos e determinados direitos.
Desta forma, quando se estabelece um dever
fundamental, não se está necessariamente a restringir um direito, mas sim a
consagrar uma obrigação a que os indíviduos dessa comunidade se encontram
vinculados, ou seja, a prever situações jurídicas passivas desses cidadãos.
Com base nesta linha de raciocínio,
vem-se a retirar deste autor uma ideia extremamente pertinente: apesar de os
deveres fundamentais poderem, por vezes fundamentar a restrição de um
determinado direito fundamental não é essa a sua função primordial.
Daqui, retira-se um outro aspecto muito
relevante: os direitos fundamentais surgem como autónomos, ou seja, não surgem
como deveres correspectivos de direitos. São assim deveres que, de forma
autónoma, vinculam todos os membros da colectividade.
A autonomia dogmática dos deveres fundamentais,
reside assim na ideia de que a eles não existe um direito correspectivo, o que
nos permite identificá-los como uma realidade jurídica autónoma.
Ora, é perante esta ideia de autonomia do
dever, que não surge assim como correlativo de qualquer direito, que o dever
fundamental surge como um conceito útil em sede de protecção subjectiva do
ambiente, uma vez que se, por um lado, acredita-se, não ser possível falar-se
num direito ao ambiente, por outro lado, afigura-se não só possível como também
extremamente útil falar num dever autónomo de respeitar o ambiente, que não tem
contraponto em qualquer direito.
Esta dimensão do dever ao ambiente
permite assim englobar realidades que não são susceptíveis de ser fundamentadas
num direito. Deste modo, e através desta figura, afigura-se como possível: i)
conceber-se deveres de protecção para com elementos naturais que, por não terem
personalidade jurídica e serem bens da colectividade nunca poderiam ser tutelados
por via da atribuição de direitos; ii) é também esta dimensão do dever que
permite justificar a protecção das gerações vindouras; iii) além do referido,
não se pode ainda esquecer a dimensão global que a problemática do ambiente tem
e se por um lado, a consagração de um direito ao ambiente seria um direito que
apenas surgiria na esfera dos elementos da nossa comunidade, um dever de
respeito pelo ambiente, afigura-se como apto a a proteger o ambiente a nível
global, na medida em que as agressões que contra este são perpretadas num
determinado ponto do mundo, podem vir a ter repercurssões num qualquer outro
ponto longínquo do globo. Como tal, a tutela do ambiente deve visar atingir
todo o globo;
Em suma, pode-se dizer que um dever
fundamental de respeito pelo ambiente, na perspectiva do cidadão, se decomporá
em: i) deveres de non facere, de respeito pela integridade ambiental;
ii)deveres de facere, de adopção de comportamentos que minimizem qualquer lesão
ou possibilidade de lesão ao ambiente; iii) deveres de pati, se traduzem na
suportação de fiscalização por parte de orgãos administrativos competentes, bem
como legitimam, justamente, a criação dessas entidades para supervisão do
cumprimento das normas de tutela ambiental; iv) deveres de dare, na medida em que
o incumprimento de normas de tutela ambiental se pode traduzir na aplicação de
contra ordenações que deverão ser suportadas pelo responsável pela lesão.
O caminho dos deveres fundamentais parece
ser assim o caminho a efectivamente seguir, na medida em que coloca realmente
em primeira linha a tutela de um bem jurídico plenamente delimitado - o
ambiente[17].
E, se por um lado, não parece possível falar-se num direito subjectivo ao
ambiente, por impossibilidade de determinação do seu objecto, por outro lado,
parece absolutamente configurável a existência de um dever fundamental de
respeito pelo ambiente que vincula cada um na comunidade.
VIII. Ambiente e direitos
De qualquer forma, o art. 66º/1 da CRP
parece ter uma determinada dimensão pretensiva que não deve ser descurada. Assim,
e novamente em concordância com CARLA AMADO GOMES[18] e
recorrendo às suas palavras, por direito ao ambiente deve ser entendido
tratar-se de uma síntese de posições procedimentais e processuais instrumentais
à gestão democrática dos bens ambientais.
Assim sendo, aquilo que os particulares
parecem ter a possibilidade de exigir será a possibilidade de aceder a
informações referentes a questões ambientais, de participar em procedimentos
autorizativos ambientais e de propor acções judiciais com vista à salvaguarda
de bens ambientais.
Ou seja, existe um interesse de facto na
fruição de um bem colectivo que é o meio ambiente e daí resulta status activus
processuallis, derivado da necessidade de um esforço solidário no sentido da
preservação dos bens ambientais e em consonância com o dever fundamental de
respeito pelo ambiente que vincula cada um.
IX. Conclusões
Chegamos agora ao momento de encetar uma
nota conclusiva sobre tudo o que foi exposto.
Assim, cumpre desde já salientar a
importância de uma protecção do ambiente quer objectiva, quer subjectiva, sendo
que essas dimensões não são incompatíveis entre si, devendo, portanto, tentar
proceder-se à densificação e delimitação de ambas, enquanto faces distintas da
mesma moeda, de modo a só assim se conseguir alcançar a potencialização máxima
da tutela ambiental.
Chegados a este ponto, e já no que
concerne à protecção subjectiva do ambiente, o problema com que nos deparamos
é, essencialmente, um problema metedológico e um equívoco funcional. Isto
porque, não se duvida de que o fim que se pretendia alcançar pelo pretenso
direito subjectivo ao ambiente consagrado na primeira parte do art 66º/1 seja o
da tutela do meio ambiente, no entanto, este método de tutela acaba por se
revelar vazio.
Esse vazio resulta do facto de, tal como
foi exposto, se afigurar impossível delimitar o objecto do direito ao ambiente,
isto porque o ambiente é, em última análise, um bem da colectividade e,
portanto, mesmo tentando construir uma relação individual de fruição sobre
esse, que justificaria esse direito subjectivo, acaba-se por chegar a um ponto
em que não se consegue definir quando começa e quando acaba essa relação
individual de fruição.
Tal situação deve-se ao facto de o bem
ambiente ser externo à esfera jurídica do eventual titular dessa relação
individual e, portanto, seria sempre necessário um elemento situado no interior
da esfera jurídica desse sujeito para verificar que existiu uma lesão ao seu
direito subjectivo ao ambiente.
Ora, tal como já foi por enésimas vezes
salientado, o bem ambiente é insusceptível de apropriação, logo o que pode
denotar a violação de um indensificável conceito de relação de fruição
individual seria sempre um direito já existente na esfera do titular desse
pretenso direito ao ambiente, como o direito de propriedade, o direito à
integridade física, entre outros.
Logo, o direito ao ambiente acabaria por
se converter numa duplicação inútil da protecção já conferida ao seu titular
por outras posições jurídicas perfeitamente autonomizadas.
Tudo isto resulta de um problema de base:
é que o art. 66º/1 da CRP, a ser entendido como conferidor de um direito ao
ambiente ao seu titular teria por escopo directo a protecção da pessoa,
enquanto que a o ambiente apenas seria tutelado indirectamente.
No entanto, tal protecção indirecta,
decorreria já de outras posições jurídicas autónomas, tal como bem o revela
muita jurisprudência do TEDH, o que só nos vai levar a realçar, já em termos
tão repetitivos que em muito prejudicam a leveza e concisidade deste texto, que
a fórmula do direito ao ambiente é vazia e de autonomização impossível face a
outras posições jurídicas.
Todavia, isto não nos pode levar a
descurar essa protecção subjectiva ao ambiente que tem, efectivamente de
existir, há assim que procurar novos caminhos.
Chegados a este ponto, o único caminho
configurável é o de valorizar a parte final do art. 66º/1 da CRP, que nos
remete para o campo do dever fundamental de respeito ao ambiente. Nesta sede, o
dever surge-nos como um instrumento autónomo, não correlativo de qualquer
direito, que vincula cada elemento da colectividade e permite assim optimizar a
protecção ambiental, construindo-a não só como tarefa estadual, mas também como
tarefa de cada um de nós enquanto cidadão.
Porém, e por último, não se deve descurar
que o art. 66º/1 da CRP continua a ter uma dimensão pretensiva, consistindo
essa dimensão pretensiva numa síntese de posições procedimentais e processuais
intrumentais à gestão democrática dos bens ambientais, como refere CARLA AMADO
GOMES, consistindo num verdadeiro status actives processuallis.
Assim, crê-se ser a figura do dever
fundamental, e não a do direito subjectivo ao ambiente, a base em torno da qual
se deve construir a protecção subjectiva do ambiente, retirando-se do art.
66º/1 uma dimensão pretensiva acessória de natureza procedimental e processual
em nome da eficácia da defesa do ambiente e enquanto complemento necessário à
ideia de dever fundamental de respeito pelo ambiente, de modo a tornar essa
defesa não só numa tarefa estadual, mas numa verdadeira tarefa de todos nós.
Se tal leitura não resulta, num primeiro
momento, como clara da Constituição, parece ser susceptível de afirmação que
tal facto deve-se, como nota CASALTA NABAIS[19], a
uma certa tendência para repudiar e ignorar os deveres, por muitas vezes estes
terem sido empregues para pretextos mais perversos, o que os levou a ser
encarados com desconfiança. Tal cenário e contexto histórico, não é de resto
estranho à conjectura sobre a qual foi redigida a Constituição de 76.
Porém, e tal como salienta TIAGO ANTUNES[20],
chega o momento de "abrir uma nova era, onde os deveres deixem de ser
ignorados e repudiados, passando, pelo contrário, a ser vistos como um
instrumento eficaz e útil aliado dos direitos na luta por uma protecção
acrescida de determinados valores comunitários (maxime do ambiente). "
[1]
Vide, Vasco Pereira da Silva, pág. 17 e seg., Verde Cor do Direito, Almedina,
2005
[2]
Ex vi, Vasco Pereira da Silva, pág. 18, ob. Cit.
[3]
Neste sentido, Vasco Pereira da Silva, pág. 90, ob. Cit.
[4]
Como por exemplo, a criação de legislação de protecção ao ambiente, impondo
regras de conduta aptas a reduzir os riscos de poluição ambiental, por parte de
entidades que desenvolvem actividades lesivas para o ambiente, ou criando
parques naturais e áreas protegidas.
[5]
Podendo assim, a título de exemplo, o particular, com fundamento no seu direito
ao ambiente, demandar uma entidade que, com a sua actividade, cause danos
ambientais graves, afectando assim o seu direito ao ambiente. No entanto,
perante um caso desta natureza há que ter sempre as maiores cautelas, umas vez
que não se pode esquecer que o responsável por esses danos está a exercer o seu
direito de livre iniciativa económica e de autonomia privada, estando-se assim
perante uma colisão de direitos que terá sempre se ser ponderada ao abrigo do
príncipio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado, e sob o seu
crivo de necessidade, adequação e razoabilidade, neste sentido, Gomes
Canotilho, Canotilho,
Actos autorizativos jurídico-públicos e responsabilidade por danos ambientais.
[6]
Vasco Pereira da Silva, p. 84 e seg., ob. Cit.
[7]
Notando-se essa vertente positiva, principalmente com a segunda geração de
direitos fundamentais, onde muitos dos direitos fundamentais adquiridos com o
Estado Social se traduzem, essencialmente, em direitos a uma prestação do
Estado, sendo bem menor aí a tradicional vertente negativa apontada aos
direitos fundamentais, enquanto direitos de defesa.
[8]
Vasco Pereira da Silva, p. 91 e seg., ob. Cit.
[9]
Vasco Pereira da Silva, p. 98, Ob. Cit.
[10]
Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, pág. 31 e seg. e Risco e
modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do
ambiente, Dissertação de Doutoramento, 2006, p. 111 e seg.
[11]Carla
Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 32
[12]
Vasco Pereira da Silva, ob. Cit., p. 95
[13]
Susana Almeida, A protecção dos direitos humanos ambientais na jurisprudência
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Temas de Direito do Ambiente, n.
6, 2011
[14]
Por exemplo, imagine-se alguém que em viagem, subitamente, se depara com uma
fábrica de madeiras, perfeitamente legalizada, mas que implicou o abate de
árvores zona de floresta circundante, de modo a desenvolver a sua actividade.
Poderá falar-se aqui de uma relação individual de fruição, decorrente de um
direito subjectivo ao ambiente, afectada? O preenchimento de um eventual
direito ao ambiente parece assim extretamente difícil de se efectuar.
[15]
Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1998
[16]
Tiago Antunes, Ambiente, um direito mas também um dever, Estudos em memória do
Professor António Marques dos Santos, II, Almedina, 2005, p. 648 e seg.
[17]
Que, em entendimento pessoal, deve ser entendido em sentido amplo, de forma a
potencializar não só a tutela ambiental, como também a justificar ainda mais a
autonomização deste ramo jurídico, procurando-se assim a edificação de uma
dogmática própria e coerente.
[18]
Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, p. 34 e seg.
[19]
Casalta Nabais, ob. Cit.
[20]
Tiago Antunes, ob. Cit.
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