domingo, 31 de março de 2013

Princípio da Precaução


Princípio da Precaução

«O princípio da precaução é o mais recente princípio do Direito do Ambiente e é aquele que leva a protecção do ambiente mais longe do que qualquer outro.»[1]

  Comece-se por referenciar a juventude do Direito do Ambiente que surge só após a 2ª Guerra Mundial e, principalmente a partir dos anos 70, «quando se tornaram mais patentes os efeitos negativos conjugados da industrialização, da urbanização e da motorização. É quando se começaram a fazer sentir, mais vincadamente, tanto a interacção dos factores tecnológicos e demográficos como a própria exiguidade e unidade do planeta.»[2].
  O princípio da precaução deriva do Tratado de Maastricht[3], sob o signo do ordenamento jurídico alemão, exigindo uma actuação, mesmo antes do princípio da prevenção impor qualquer acção preventiva.
  Freitas Martins indica que este princípio surgiu «fruto da desmistificação do poder absoluto da ciência e da tecnologia e de demanda social de insegurança».[4]
  Uma das primeiras manifestações deste princípio ocorreu na década de 80 no âmbito da 2ª Conferência Internacional sobre a Protecção do Mar do Norte, em 1987, evidenciando que deveriam ser reduzidas as emissões de poluição, mesmo quando não haja prova científica evidente do nexo causal entre as emissões e os efeitos que delas decorrem[5].
  É a partir deste momento que o princípio da precaução legitima agora a intervenção comunitária mesmo na ausência de dados científicos precisos comprovativos do nexo, isto é, o ônus da prova da inocuidade de uma acção em relação ao ambiente é transferido, do legislador ou do potencial poluidor, para o poluidor.
  Este princípio reflecte a obrigação de adoptar medidas de prevenção específicas contra acidentes ambientais, e significa que o ônus da prova de que não vão ocorrer danos ambientais e de que estão a ser adoptadas medidas preventidas específicas cabe, assim, ao poluidor. É este um subprincípio do princípio do poluidor pagador, determinando que o poluidor pague os custos da precaução.
  Tem, portanto, a sua máxima aplicação em casos de dúvida, na medida em que haja incerteza, por falta de provas científicas e evidentes sobre o nexo causal entre uma actividade e um determinado fenómeno de poluição ou degradação do ambiente. Fala-se assim de uma espécie de in dúbio pro ambiente, evidenciando que, na existência desta dúvida, se decida a favor do ambiente e contra o potencial poluidor.[6]
  Determinante é explicitar que não se trata de qualquer dúvida, relevando somente dúvidas científicas que contribuam para a determinação dos riscos ambientais inerentes a uma qualquer actividade. Esta dúvida sobre a perigosidade de determinada acção para o ambiente pode ocorrer, nomeadamente, quando ainda não se verifiquem quaisquer danos decorrentes dessa actividade, mas há um receio de que, apesar da falta de provas científicas, tais danos possam vir a ocorrer. Ou mesmo quando, havendo já danos efectivos, não haja conhecimento científico de qual a causa está na origem destes danos; ou ainda, apesar da existência destes danos, não tenha sido apurado o nexo de causalidade entre uma determinada causa hipotética e os danos verificados.
  Mas o princípio da precaução é alvo de imensa discórdia doutrinária porque se confunde, mais das vezes, com o princípio da prevenção. Ainda assim, verifica-se uma tendência de autonomização dos dois conceitos, encontrando acolhimento legislativo nomeadamente no artigo 191º/2 do TFUE : «a política da União (…) basear-se-á nos princípios da precaução e da acção preventiva».
  Assim, cabe determinar o sentido e alcance deste princípio no sentido de argumentar sobre a sua autonomização dogmática, avançando desde já que a distinção entre ambos os princípios é clara, desde logo porque na precaução se exige uma protecção antecipada do ambiente ainda num momento anterior ao que é imposto pelo princípio da prevenção. Tão clara não será certamente a sua aplicação prática, uma vez que o princípio da precaução se baseia em critérios muito diversificados, nem sempre inequívocos, o que dificulta a separação estanque destes princípios.
 Um dos critérios de distinção será aquele que inculca na prevenção a determinação de “perigos” decorrentes de causas naturais, e na precaução os “riscos” que seriam provocados pro acções humanas. Ora este é, desde logo, um critério de difícil aferição  porque, como explica o Prof. Vasco Pereira da Silva[7], nas sociedades pós-industrializadas, as lesões ambientais são resultado de um concurso de causas em que é impossível distinguir factos naturais de comportamentos humanos. Pense-se no fenómeno chuva, que tanto pode se pode considerar como um fenómeno natural, ou, por outro lado, pode ser potenciado ou agravado pela acção humana, nomeadamente através da poluição atmosférica ou decorrente do “efeito de estufa”.
  Quanto ao carácter actual ou futuro dos riscos, também este se mostra inadequado a favorecer tal distinção, tanto mais que, no domínio das lesões ambientais, estes riscos se encontram numa ligação indissociável.
 Da mesma forma é criticável a opção de recondução do princípio da precaução a um princípio in dubio pro natura, na medida em que atribuir dimensão jurídica a este princípio implicaria uma carga excessiva, uma vez que o risco zero em direito ambiental não existe.
Sabendo que um dos corolários da precaução é a adopção de medidas tendentes a qualquer actividade humana, mesmo na ausência de provas científicas irrefutáveis quanto à existência de um nexo de causalidade, note-se que o mesmo não se pode reconduzir a um desprezo pela lógica causal em matéria de ambiente.[8]
  Quanto à afirmação de um ônus da prova de que não haverá qualquer lesão ambiental, estando o mesmo a cargo de quem pretende desenvolver uma actividade potencialmente danosa, tal é manifestamente excessivo, não só em virtude do que já foi dito em relação ao “custo zero” em ambiente, bem como a consagração de tal exigência possa representar um facto inibidor de qualquer fenómeno de mudança. Assim sucede nas reacções dos populares à introdução de um aterro sanitário, mesmo que desta obra resultem benefícios para a comunidade e para o meio ambiente.
  Por tudo isto, o professor Vasco Pereira da Silva mostra-se bastante crítico não só quanto aos critérios de autonomização da precaução como ao processo em si. Recorda ainda que o princípio da prevenção é elevado à categoria de princípio constitucional, com todas as suas consequências jurídicas, pelo que «a adopção de uma noção ampla de prevenção, constitucionalmente fundada, [lhe] pareça ser a via mais eficaz e adequada para assegurar, no sistema jurídico português, a “melhor tutela disponível” dos valores ambientais.». Desta forma, adopta um critério amplo para o princípio da prevenção, de modo a nele incluir a consideração tanto de perigos naturais como de riscos humanos, tanto a antecipação de lesões ambientais de carácter actual como de futuro, sempre de acordo com critérios de razoabilidade e de bom senso.
  Também Carla Amado Gomes[9] vem evidenciar que a “precaução, por si só, é um conceito algo demagógico, que aposta na exploração do risco que paira sobre as sociedades contemporâneas.”. Refere ainda que estre princípio foi banalizado, impedindo todo e qualquer desenvolvimento, perante uma enormidade de riscos que possam existir.
  De todo o modo não podem deixar de se considerar alguns pontos firmes quanto à existência de um princípio da precaução no direito do ambiente, que inculca um dever de promover a investigação científica, de forma a poder contar com quadros de decisão o mais fiáveis possível, e de apoiar os Estados menos favorecidos na implementação de estruturas a fim de desenvolver idêntico trabalho de investigação. Acresce ainda um dever de divulgar todas as informações relacionadas com a protecção ambiental, através de estruturas regionais e mundiais, com o objectivo de cooperar activamente nos vários domínios da protecção ambiental.[10]
  Surge também um dever de prever a notificação de situações de ameaça ou de emergência ambiental, tal como deveres tendentes à adopção de medidas para as prevenir e minorar.
Não será de somenos evidenciar a importância da participação dos cidadãos nos procedimentos decisórios, tornando acessível a informação, favorecendo a pronúncia das populações e tomando a devida nota dos seus contributos na fundamentação das decisões.
  A consagração destes deveres permite suavizar os efeitos negativos da lógica preventiva alargada, sem que se tome nesta exposição qualquer posição relativamente à desagregação do princípio da precaução, sendo certo que ele assume determinada importância e demonstra um passo enorme na evolução da protecção do direito do ambiente, tendo um escopo diverso daquele que se atribui ao princípio da prevenção.
  Uma vez iluminada a estreita relação entre a antecipação de riscos e a minimização do tempo de intervenção com vista à salvaguarda do ambiente, no âmbito do desenvolvimento do princípio da precaução, cabe aludir a um caso jurisprudencial em que tal princípio foi aplicado.
   No direito da União, o Tribunal de Justiça de União Europeia, no seu acórdão de 11 de Setembro de 2002, no processo T-13/99 aplicou, numa decisão pioneira, o princípio da precaução ao caso Pfizer[11]. Neste caso discutia-se a validade de um regulamento comunitário que impedia a comercialização de um antibiótico utilizado como aditivo nos alimentos para animais. A empresa Pfizer, líder mundial, sentiu-se lesada com a aplicação das normas do regulamento, sendo que este revogava as autorizações que a empresa já detinha. Assim, apresentou um pedido de suspensão total da eficácia do regulamento até à decisão da acção de anulação que intentou.
  Por sua vez, o TJUE recusou este pedido e confirmou o indeferimento, uma vez que as razões apresentados pelo alegante contendiam com o interesse público de salvaguarda da saúde. Assim, o tribunal baseou a sua decisão de indeferimento no princípio da precaução. Descrevendo detalhadamente a relação entre o risco e a precaução, analisou as condutas das autoridades comunitárias com vista à adopção de um regulamento proibitivo.
  Contudo, o Tribunal decidiu-se pela validade deste regulamento, baseando-se: I) no comité de peritos consultado pela Comissão que se pronunciou no sentido da inexistência de risco para a saúde animal e humana; II) apesar do Tribunal ter sublinhado que a decisão não deveria apoiar-se numa “abordagem puramente hipotética do risco, assente em meras suposições ainda não cientificamente comprovadas”; III) apesar do Tribunal aceitar que, em cenários de incerteza, de controvérsia entre os cientistas, o decisor deve adoptar as medidas que lhe pareçam mais adequadas e necessárias para evitar a realização do risco, embora tal operação não fique imune do controlo jurisdicional.
  Relativamente a este parecer que determinava a inexistência de risco, a Comissão decidiu seguir outros estudos apresentados por peritos, no sentido da susceptibilidade da eclosão do risco em virtude da utilização do antibiótico.
 Quando questionada a Pfizer sobre qual a prova que deveria ser feita para justificar a retirada do antibiótico do mercado, esta respondeu: “tal seria provado pela primeira infecção ou pela primeira prova de colonização ou a primeira prova de transferência para um ser humano”- tentando refutar a indispensabilidade que a Comissão imputava à proibição de comercialização. Por sua vez, o Tribunal retorquiu: “ se houvesse que esperar pela conclusão de tais investigações para que fosse reconhecido às instituições comunitárias o poder de tomar medidas de protecção preventivas, o princípio da precaução, cujo objectivo é evitar a superveniência de tais efeitos adversos, ficaria privado do seu efeito útil”.
  Nesta decisão é notória a associação entre a precaução e a proporcionalidade. No fundo, o TJUE admitiu que as autoridades comunitárias estão investidas em deveres de protecção de bens fundamentais, como a saúde pública, facto que não deve conduzi-las a sacrificar outros interesses, públicos ou particulares.[12]
  Apesar desta breve referência a decisões jurisprudenciais, é de salientar que os tribunais têm manifestado alguma hesitação na aceitação do princípio da precaução[13] como razão para fundamentar as decisões de acolhimento de providências cautelares.
  Cabe, para finalizar, invocar algumas conclusões sobre o princípio (para alguns) da precaução e a sua importância na concretização fundamental da defesa do ambiente.
  Comece-se por dizer que a ideia de precaução não assenta em considerações vazias e sem sentido, para mais ela é largamente definida como instrumento para antecipar e evitar riscos ambientais potencialmente graves. Assim, assume especial relevância no momento em que se deve evitar “deixar fazer”, com vista adoptar acções provisórias até que se produza conhecimento sobre o risco, permitindo assim que se tomem medidas preventivas, já no âmbito da prevenção, como forma de impedir a concretização de danos associados a riscos concretos, não já identificáveis, mas identificados. A precaução traduz-se numa ideia de hipervalorização de valores ambientais, confrontados, muitas vezes, com valores tecnológicos e económicos, sem que para tal existe uma comprovação científica das consequências que as acções humanas possam ter.
  Hoje, todos reconhecemos o carácter essencial céptico da ciência, porque perdemos a ilusão da intangibilidade da certeza científica. Quanto ao risco, cabe a todos aprender a conviver com ele, através da adopção de razoáveis medidas, assentes não só nos deveres de informação e na provisoriedade da revisão dos dados científicos, adoptando medidas cautelares tendo em vista a proporcionalidade dos interesses em jogo, ou seja, ponderando a protecção do ambiente e a liberdade de iniciativa económica.
  Só é possível ter em consideração o ambiente se os princípios ambientais fundamentais forem respeitados no âmbito das várias políticas da União Europeia, é o caso do princípio da precaução.
  Independentemente da consagração do princípio no ordenamento jurídico interno por iniciativa autónoma do legislador nacional, ou por recepção do princípio por mero dever da obrigação de transposição de directivas europeias, ele vigora e é directamente aplicável na ordem jurídica interna como princípio geral de direito europeu.

Cátia Carlos, 19551.

Bibliografia

§  CARLA ALMADO GOMES, «Textos dispersos de Direito do Ambiente»,  AAFDL, vol.I e II, 2005, pp.133-174.
§  CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS / JOSÉ EDUARDO DE OLIVEIRA FIGUEIREDO DIAS / MARIA ALEXANDRA DE SOUSA ARAGÃO «Introdução ao Direito do Ambiente», Coordenação Científica de José Joaquim Gomes Canotilho, pp.48-50.
§   GERMANO LUIZ GOMES VIEIRA, «Protecção Ambiental e Instrumentos de Avaliação do Ambiente», 2011, pp.33-38.
§  JORGE MIRANDA, «Direito do Ambiente», ’A Constituição e o Direito do Ambiente’pp.353-365.
§  JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO / JOSÉ RUBENS MORATO LEITE, «Direito Constitucional do Ambiente da União Europeia» in Direito Constitucional Ambiental Brasileiro, Editora Saraiva, 2007, p.41.
§  MARIA ALEXANDRA SOUSA ARAGÃO, «O princípio do Poluidor Pagador, Pedra Angular da Política Comunitária do Ambiente», Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra 1997, pp68-71.
§  VASCO PEREIRA DA SILVA, «Mais Vale Prevenir do que Remediar», Prevenção e Precaução no Direito do Ambiente in” Direiro Ambiental Contemporâneo, Prevenção e Precaução”, Coordenadores João Hélio Ferreira Pes e Rafael Santos de Oliveira, 2009, pp.11-30.
§  VASCO PEREIRA DA SILVA, «Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente», Almedina, Coimbra, 2002.
Jurisprudência
§  Acórdão do Tribunal Penal Internacional, de 11 de Setembro de 2002, no processo T-13/99.
§  Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 19 de Novembro de 2006, processo 01932/06.






[1] “Introdução ao Direito do Ambiente”, Cláudia Maria Cruz Santos, José Eduardo de Oliveira Figueiredo Dias e Maria Alexandra de Sousa Aragão, Coordenação Científica de José Joaquim Gomes Canotilho, pp.48-50.
[2] “Direito do Ambiente”, ’A Constituição e o Direito do Ambiente’, Jorge Miranda,pp.353-365.
[3] «Enquanto a prevenção requer que os perigos comprovados sejam eliminados, o princípio da precaução determina que a acção para eliminar possíveis impactos danosos do ambiente seja tomada antes de um nexo causal ter sido estabelecido com uma evidência científica absoluta», “The 1992 Maastricht Treaty- Implications for European Environmental Law”, in European Environmental Law Review, vol.I, Junho 1992, pg.24, David Freestone.
[4] “Protecção Ambiental e Instrumentos de Avaliação do Ambiente”, Germano Luiz Gomes Vieira, 2011, pp.33-38.
[5] “O princípio do Poluidor Pagador, Pedra Angular da Política Comunitária do Ambiente”, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra 1997, Maria Alexandra de Sousa Aragão, pp68-71.
[6] Alexandra Aragão toma precisamente esta argumentação. Vide “Direito Constitucional do Ambiente da União Europeia” in Direito Constitucional ambiental Brasileiro. Organizadores: José Joaquim Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite, Editora Saraiva, 2007, p.41
[7] “Mais Vale Prevenir do que Remediar”, Prevenção e Precaução no Direito do Ambiente in” Direiro Ambiental Contemporâneo, Prevenção e Precaução”, Coordenadores João Hélio Ferreira Pes e Rafael Santos de Oliveira, 2009, pp.11-30.
[8] Prof Vasco Pereira da Silva usa até uma conhecida metáfora literária “não é por causa de um bater de asas de borboleta na Europa que alguém morre na China”, ob.cit. p.16.
[9] “Textos dispersos de Direito do Ambiente”, Carla Amado Gomes, AAFDL, vol.I e II, 2005, pp.133-174.

[10] Carla Amado Gomes, ob. cit.
[11] Carla Amado Gomes, ob.cit, pp. 139-143.
[12] A mesma argumentação teve o TJUE no caso recente da empresa Malagutti-Vezinhet, S.A, em virtude de anúncios da Comissão para retirada do mercado de vários lotes de maçãs comercializadas pela empresa, por acusarem um dado teor de um componente superior ao permitido, facto que poderia causar riscos à saúde pública. (Acórdão de 10 de Março de 2004, processo T-177/02).
[13] O mesmo sucedeu no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 19 de Novembro de 2006, processo 01932/06, quando este mesmo princípio foi invocado pela Quercus a fim de travar a construção de um novo troço do IC19.

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