domingo, 31 de março de 2013


Contratos de adaptação ambiental: A problemática do Princípio da Legalidade

Na doutrina administrativa clássica a aproximação do Estado aos particulares com finalidades de cooperação no combate à poluição, era vista com muita desconfiança. Ao invés, hoje em dia, atendendo à sociedade fortemente industrializada em que vivemos e sendo a poluição “um dos maiores inimigos do ambiente[1], torna-se essencial que a Administração Pública proceda à utilização de formas de contratualização ou concertação que visem proteger o nosso ambiente. Adoptando tal via, verifica-se que a concertação das diferentes partes na formação e consequente aplicação do contrato fomenta a sua aceitação e efectiva aplicação. Como é do conhecimento geral, a legislação que versa sobre a protecção do ambiente nem sempre vê concretizados todos os seus objectivos, nomeadamente porque muitos dos seus destinatários preferem acarretar com consequências punitivas do seu desrespeito em vez de tomarem as deligências necessárias à sua aplicação, o que se pode traduzir em avultados prejuízos económicos e financeiros. Numa primeira análise, parece preferível adoptar esta via e não uma que paute pela imposição coerciva das normas de protecção ambiental aos particulares, e que os deixe sem grande margem de manobra.
Dentro desta via será dada neste trabalho especial atenção aos designados contratos de adaptação ambiental. Mark Kirby define-os afirmando que estes “têm por objecto o estabelecimento de um plano de adaptação das empresas aderentes a normas ambientais imperativas, dento do qual estas ficam à margem dos referenciais de fiscalização decorrentes das disposições legais sobre a matéria, que são substituídas por referenciais definidos contratualmente[2], isto é, têm como finalidade atenuar a transição da legislação sobre esta matéria, permitindo às sociedades empresariais de alguns sectores onde operam indústrias poluentes prepararem-se para a sua aplicação efectiva da forma que lhes for mais vantajosa, diminuindo potenciais prejuízos que lhes pudessem ser causadas. São, portanto, um regime transitório.
O DL 74/90 de 7 de Março foi um marco na matéria dos contratos de adaptação ambiental, sendo que foi em meados dos anos 90 que estes foram assumidos pelo Ministério do Ambiente como valiosos instrumentos de política ambiental, não apenas no combate à poluição da água, como no combate à poluição nos mais diversos domínios[3]. A própria Lei de Bases do Ambiente prevê este mecanismo no seu artigo 35º.
Artigo 35.º
Redução e suspensão de laboração
1 - Pelo serviço competente do Estado responsável pelo ambiente e ordenamento do território poderá ser determinada a redução ou suspensão temporária ou definitiva das actividades geradoras de poluição para manter as emissões gasosas e radioactivas, os efluentes e os resíduos sólidos dentro dos limites estipulados, nos termos em que for estabelecido pela legislação complementar da presente lei.
2 - O Governo poderá celebrar contratos-programa com vista a reduzir gradualmente a carga poluente das actividades poluidoras.
3 - Os contratos-programa só serão celebrados desde que da continuação da laboração nessas actividades não decorram riscos significativos para o homem ou o ambiente.

No entanto, esta forma de contratualização não pode deixar de suscitar algumas questões, desde logo no que diz respeito à sua compatibilização com o princípio da legalidade e com o princípio da tutela procedimental de direitos e interesses dos administrados. Os contratos de adaptação ambiental implicam uma derrogação clara do regime legalmente estabelecido por via negocial, isto é, a letra da lei cede perante a vontade das partes contratantes. Ora, esta solução parece contrariar o estabelecido na nossa lei fundamental, mais precisamente no seu artigo 112.º, nº5[4], quando esta proíbe a derrogação de actos normativos, sendo, portanto, de encarar a norma que permite os contratos de adaptação ambiental como inconstitucional. Para Vasco Pereira da Silva[5], temos de adoptar uma “análise material dos valores que aqui se defrontam, por uma lado, os princípios da constitucionalidade, da legalidade e da tipicidade das formas de lei, por outro lado, o da eficácia da realização da polícia ambiental pela via contratual, o da participação e da colaboração dos particulares no exercício da administração de ambiente, e o da tutela da confiança dos particulares, quando se verifique alteração dos padrões decisórios da administração em matéria ambiental”, quer isto dizer que não podem os contratos administrativos, nomeadamente os contratos de adaptação ambiental, violar os princípios assentes na Constituição da República Portuguesa, no entanto há que ter em linha de conta os próprios princípios prosseguidos por estes contratos, que são eles o da eficácia, participação e tutela da confiança, e procurar delimitar e harmonizar o seu âmbito de aplicação no quadro da ordem jurídica portuguesa.
Para alcançar a harmonização a que nos referimos, Vasco Pereira da Silva refere três aspectos que se devem verificar, cumulativamente:
                     i.        Partindo de uma interpretação casuística, que os contratos de adaptação ambiental estejam de acordo com o espírito do nosso sistema e que se traduzam num mecanismo concertado e gradual de aplicação da lei;
                    ii.        Que se considere possível a interpretação da norma no sentido de conter um regime geral e um especial sendo que o especial apenas parcialmente é determinado pela lei, a outra parte é determinada por via contratual.
                  iii.        Que o regime especial, a ser desenvolvido por via contratual, esteja sempre limitado pelas regras de competência, fim, bem como pelos princípios fundamentais da actividade administrativa.

Já Mark Kirby[6] adopta uma posição mais restritiva, defendendo que à luz da nossa Constituição, este tipo contratual tem de ser entendido como marginal ou residual, relativamente a outros instrumentos de actuação administrativa ambiental. Carla Amado Gomes considera como inconstitucionais os contratos de adaptação ambiental uma vez violam o artigo 112.º, n.º 5, da CRP, são contratos públicos a modificar preceitos legais que irão afectar terceiros não contraentes
Podemos concluir que os contratos de adaptação ambiental se pautam pelo princípio da prevenção, ou seja, prevendo que as entidades poluidoras não têm a capacidade de se adaptar atempadamente às alterações legislativas que incidam sobre questões ambientais, tenta-se evitar a ocorrência de males maiores, sem com isso comprometer o objecto da lei, e firma-se um compromisso de redução gradual das cargas poluidoras, que não cause dano à sociedade. Importa realçar que se deve respeitar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado dos que não formaram o contrato, mas que sofrem o seu impacto[7]. Pode também questionar-se se o princípio da protecção da confiança não poderá justificar, de algum modo, o recurso a estes contratos. Duarte Rodrigues da Silva argumenta que tal ideia apenas procede se a alteração legislativa for imprevisível e lesar os seus destinatários. Ora, no campo ambiental, as alterações são absolutamente previsíveis, pelo que não parece que “a confiança depositada num determinado quadro legal, sirva de justificação à utilização de medidas transitórias”[8].
Perfilhando a orientação de Vasco Pereira da Silva, não procede a ideia de que todos os contratos de adaptação ambiental estejam feridos de inconstitucionalidade. Estes devem obedecer a certos parâmetros de legalidade (já acima expostos), sendo que são um mecanismo que permite evitar a constante infracção das normas ambientais, convidando, antes, a que as entidades procedam a uma alteração gradual dos seus comportamentos, até que possam cumprir por completo o previsto na lei.

Bibliografia:

GOMES, Carla Amado, Introdução ao direito do ambiente, AAFDL, 2012
KIRBY, Mark Bobela-Mota, Os contratos de adaptação ambiental : a concentração entre a administração pública e os particulares na aplicação de normas de polícia administrativa, AAFDL, 2001
MIRANDA, Maria Lívia Jales de, Contratos de adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2010
SILVA, Duarte Silva Bernardo Rodrigues, Os contratos de adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2001
SILVA, Vasco Pereira da, Verde cor de direito : lições de direito do ambiente, Almedina, 2002







[1] GOMES, Carla Amado, Introdução ao direito do ambiente, AAFDL, 2012, p. 102
[2] KIRBY, Mark Bobela-Mota, Os contratos de adaptação ambiental : a concentração entre a administração pública e os particulares na aplicação de normas de polícia administrativa, AAFDL, 2001, p. 40
[3] Os primeiros contratos de adaptação ambiental remontam a 1988, tendo por partes a DGA e as associações representativas da indústria da paste de papel, onde ficou acordado os mecanismos que visavam a redução do impacto da actividade deste sector na qualidade da água e do ar.
[4] Artigo 112º, nº5 CRP: Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.”
[5] SILVA, Vasco Pereira da, Verde cor de direito : lições de direito do ambiente, Almedina, 2002, p. 218
[6] KIRBY, Mark Bobela-Mota, Os contratos de adaptação ambiental : a concentração entre a administração pública e os particulares na aplicação de normas de polícia administrativa, AAFDL, 2001, p.79
[7] MIRANDA, Maria Lívia Jales de, Contratos de adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2010, p.2

[8] SILVA, Duarte Silva Bernardo Rodrigues, Os contratos de adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2001, p.48

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