Contratos de adaptação ambiental: A
problemática do Princípio da Legalidade
Na doutrina administrativa clássica a aproximação do Estado
aos particulares com finalidades de cooperação no combate à poluição, era vista
com muita desconfiança. Ao invés, hoje em dia, atendendo à sociedade fortemente
industrializada em que vivemos e sendo a poluição “um dos maiores inimigos do ambiente”[1],
torna-se essencial que a Administração Pública proceda à utilização de formas
de contratualização ou concertação que visem proteger o nosso ambiente. Adoptando
tal via, verifica-se que a concertação das diferentes partes na formação e
consequente aplicação do contrato fomenta a sua aceitação e efectiva aplicação.
Como é do conhecimento
geral, a legislação que versa sobre a protecção do ambiente nem sempre vê
concretizados todos os seus objectivos, nomeadamente porque muitos dos seus
destinatários preferem acarretar com consequências punitivas do seu desrespeito
em vez de tomarem as deligências necessárias à sua aplicação, o que se pode traduzir
em avultados prejuízos económicos e financeiros. Numa primeira análise, parece
preferível adoptar esta via e não uma que paute pela imposição coerciva das
normas de protecção ambiental aos particulares, e que os deixe sem grande
margem de manobra.
Dentro desta via será
dada neste trabalho especial atenção aos designados contratos de adaptação
ambiental. Mark Kirby define-os afirmando que estes “têm por objecto o estabelecimento de um plano de adaptação das empresas
aderentes a normas ambientais imperativas, dento do qual estas ficam à margem
dos referenciais de fiscalização decorrentes das disposições legais sobre a
matéria, que são substituídas por referenciais definidos contratualmente”[2],
isto é, têm como finalidade atenuar a transição da legislação sobre esta
matéria, permitindo às sociedades empresariais de alguns sectores onde operam
indústrias poluentes prepararem-se para a sua aplicação efectiva da forma que
lhes for mais vantajosa, diminuindo potenciais prejuízos que lhes pudessem ser
causadas. São, portanto, um regime transitório.
O DL 74/90 de 7 de
Março foi um marco na matéria dos contratos de adaptação ambiental, sendo que
foi em meados dos anos 90 que estes foram assumidos pelo Ministério do Ambiente
como valiosos instrumentos de política ambiental, não apenas no combate à
poluição da água, como no combate à poluição nos mais diversos domínios[3].
A própria Lei de Bases do Ambiente prevê este mecanismo no seu artigo 35º.
Artigo 35.º
Redução e suspensão de laboração
1 - Pelo serviço competente do Estado responsável pelo
ambiente e ordenamento do território poderá ser determinada a redução ou
suspensão temporária ou definitiva das actividades geradoras de poluição para
manter as emissões gasosas e radioactivas, os efluentes e os resíduos sólidos
dentro dos limites estipulados, nos termos em que for estabelecido pela
legislação complementar da presente lei.
2 - O Governo poderá celebrar contratos-programa com
vista a reduzir gradualmente a carga poluente das actividades poluidoras.
3 - Os contratos-programa só serão celebrados desde
que da continuação da laboração nessas actividades não decorram riscos
significativos para o homem ou o ambiente.
No entanto, esta forma
de contratualização não pode deixar de suscitar algumas questões, desde logo no
que diz respeito à sua compatibilização com o princípio da legalidade e com o princípio
da tutela procedimental de direitos e interesses dos administrados. Os
contratos de adaptação ambiental implicam uma derrogação clara do regime
legalmente estabelecido por via negocial, isto é, a letra da lei cede perante a
vontade das partes contratantes. Ora, esta solução parece contrariar o
estabelecido na nossa lei fundamental, mais precisamente no seu artigo 112.º,
nº5[4],
quando esta proíbe a derrogação de actos normativos, sendo, portanto, de
encarar a norma que permite os contratos de adaptação ambiental como
inconstitucional. Para Vasco Pereira da Silva[5],
temos de adoptar uma “análise material
dos valores que aqui se defrontam, por uma lado, os princípios da
constitucionalidade, da legalidade e da tipicidade das formas de lei, por outro
lado, o da eficácia da realização da polícia ambiental pela via contratual, o
da participação e da colaboração dos particulares no exercício da administração
de ambiente, e o da tutela da confiança dos particulares, quando se verifique
alteração dos padrões decisórios da administração em matéria ambiental”,
quer isto dizer que não podem os contratos administrativos, nomeadamente os
contratos de adaptação ambiental, violar os princípios assentes na Constituição
da República Portuguesa, no entanto há que ter em linha de conta os próprios princípios
prosseguidos por estes contratos, que são eles o da eficácia, participação e
tutela da confiança, e procurar delimitar e harmonizar o seu âmbito de
aplicação no quadro da ordem jurídica portuguesa.
Para alcançar a
harmonização a que nos referimos, Vasco Pereira da Silva refere três aspectos
que se devem verificar, cumulativamente:
i.
Partindo de uma interpretação casuística, que os contratos de
adaptação ambiental estejam de acordo com o espírito do nosso sistema e que se
traduzam num mecanismo concertado e gradual de aplicação da lei;
ii.
Que se
considere possível a interpretação da norma no sentido de conter um regime
geral e um especial sendo que o especial apenas parcialmente é determinado pela
lei, a outra parte é determinada por via contratual.
iii.
Que o regime
especial, a ser desenvolvido por via contratual, esteja sempre limitado pelas
regras de competência, fim, bem como pelos princípios fundamentais da
actividade administrativa.
Já Mark Kirby[6]
adopta uma posição mais restritiva, defendendo que à luz da nossa Constituição,
este tipo contratual tem de ser entendido como marginal ou residual,
relativamente a outros instrumentos de actuação administrativa ambiental. Carla
Amado Gomes considera como inconstitucionais os contratos de adaptação
ambiental uma vez violam o artigo 112.º, n.º 5, da
CRP, são contratos públicos a modificar preceitos legais que irão afectar
terceiros não contraentes
Podemos concluir que os contratos de adaptação
ambiental se pautam pelo princípio da prevenção, ou seja, prevendo que as entidades
poluidoras não têm a capacidade de se adaptar atempadamente às alterações
legislativas que incidam sobre questões ambientais, tenta-se evitar a
ocorrência de males maiores, sem com isso comprometer o objecto da lei, e firma-se
um compromisso de redução gradual das cargas poluidoras, que não cause dano à sociedade.
Importa realçar que se deve respeitar o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado dos que não formaram o contrato, mas que sofrem o seu impacto[7]. Pode
também questionar-se se o princípio da protecção da confiança não poderá
justificar, de algum modo, o recurso a estes contratos. Duarte Rodrigues da
Silva argumenta que tal ideia apenas procede se a alteração legislativa for imprevisível
e lesar os seus destinatários. Ora, no campo ambiental, as alterações são
absolutamente previsíveis, pelo que não parece que “a confiança depositada num
determinado quadro legal, sirva de justificação à utilização de medidas
transitórias”[8].
Perfilhando a orientação de Vasco Pereira da Silva,
não procede a ideia de que todos os contratos de adaptação ambiental estejam
feridos de inconstitucionalidade. Estes devem obedecer a certos parâmetros de legalidade
(já acima expostos), sendo que são um mecanismo que permite evitar a constante
infracção das normas ambientais, convidando, antes, a que as entidades procedam
a uma alteração gradual dos seus comportamentos, até que possam cumprir por
completo o previsto na lei.
Bibliografia:
GOMES, Carla Amado, Introdução ao direito do ambiente,
AAFDL, 2012
KIRBY, Mark Bobela-Mota, Os contratos de adaptação
ambiental : a concentração entre a administração pública e os
particulares na aplicação de normas de polícia administrativa, AAFDL, 2001
MIRANDA, Maria Lívia Jales de, Contratos de
adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2010
SILVA, Duarte Silva Bernardo Rodrigues, Os contratos
de adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2001
SILVA, Vasco Pereira da, Verde cor de
direito : lições de direito do ambiente, Almedina, 2002
[2] KIRBY, Mark Bobela-Mota, Os contratos de adaptação
ambiental : a concentração entre a administração pública e os
particulares na aplicação de normas de polícia administrativa, AAFDL, 2001,
p.
40
[3]
Os primeiros contratos de adaptação ambiental remontam a 1988, tendo por partes
a DGA e as associações representativas da indústria da paste de papel, onde
ficou acordado os mecanismos que visavam a redução do impacto da actividade deste
sector na qualidade da água e do ar.
[4] Artigo
112º, nº5 CRP: “Nenhuma lei pode criar
outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o
poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou
revogar qualquer dos seus preceitos.”
[5] SILVA, Vasco Pereira da, Verde cor de
direito : lições de direito do ambiente, Almedina, 2002, p. 218
[6] KIRBY,
Mark Bobela-Mota, Os contratos de adaptação ambiental : a
concentração entre a administração pública e os particulares na aplicação de normas
de polícia administrativa, AAFDL, 2001, p.79
[7]
MIRANDA, Maria Lívia Jales de, Contratos de
adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2010, p.2
[8]
SILVA, Duarte Silva Bernardo Rodrigues, Os contratos
de adaptação ambiental, Faculdade de Direito de Lisboa, 2001, p.48
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