sexta-feira, 29 de março de 2013

Os Critérios Ambientais na Contratação Pública


1.Introdução; 2.Comunicação Interpretativa da Comissão de 2001; 3.Posição do Tribunal de Justiça da União Europeia – o Acórdão Concórdia Bus; 4.As Directivas de 2004; 5.O Código dos Contratos Públicos; 6.Conclusão.


  1. Introdução
A contratação pública tem sido importante pelo facto de proporcionar o desenvolvimento de projectos avultos, representando cerca de 16% do Produto Interno Bruto da União Europeia.
Por esse motivo, os Estados pretendem, ao celebrar contratos públicos, pretendem que estes não se cingem apenas aos objectivos estritamente necessários, tal como a compra de bens, serviços ou obras (as chamadas politicas primárias) mas sim que atingir outros factores, tais como as políticas sociais e ambientais, ou seja, as chamadas políticas secundárias. Visa-se, no fundo, a possibilidade de uma união entre os vários objectivos a realizar pela União Europeia, tal como consta do art. 11º do Tratado de Funcionamento da União Europeia ao reclamar o princípio da integração e exigir que a matéria relativa ao ambiente deve fazer parte das acções da União.
O principal problema ao introduzir critérios ambientais na contratação pública reside no facto da maior facilidade de discriminação[1] dos concorrentes por parte da entidade adjudicante uma vez que não estão apenas em jogo critérios puramente económicos e coloca em causa o princípio europeu da concorrência efectiva. 
Apesar disso, a importância do ambiente começa a fazer sentir-se. Em primeiro lugar, surge a nível da União Europeia, de forma gradual e lenta. Mais tarde, por influência do primeiro, também a nível nacional.
A Comissão, na sua Comunicação Interpretativa[2] afirma que “a realização prática deste objectivo exige que o crescimento económico apoie o progresso social e respeite o ambiente (...) e que a política do ambiente seja economicamente eficiente”. O que se procura, efectivamente, é uma “sinergia” entre a iniciativa económica e as preocupações ambientais e sociais. Contudo, sabemos à partida que esta procura de sinergias não é fácil pois a realização do mercado única e as preocupações ambientais podem colidir. No entanto, são as entidades adjudicantes a quem incumbe o dever de promover um desenvolvimento sustentável e qualidade de vida.

  1. A Comunicação Interpretativa da Comissão de 2001
Em 2001, a Comissão apresenta duas Comunicações Interpretativas: a primeira relativa ao Direito aplicável aos contratos públicos e a possibilidade de integrar considerações ambientais na contratação pública[3]; a segunda sobre a possibilidade de integrar aspectos sociais. Para o nosso post apenas a primeira comunicação é relevante.
A Comissão, através desta comunicação pretende essencialmente integrar considerações ambientais na contratação pública para que as entidades adjudicantes possam contribuir para um desenvolvimento sustentável[4], uma vez que as directivas relativas aos contratos públicos não fazem qualquer tipo de referência a estes critérios ecológicos[5]. Tal como afirma a Comissão neste documento “o objectivo deste é examinar e clarificar as possibilidades que o regime de contratação pública existente oferece para uma consideração optimizada da protecção do ambiente nos contratos públicos. O documento seguirá as diferentes fases do processo de adjudicação de um contrato e examinará, a cada passo, a forma como se poderão ter em conta as preocupações ambientais[6]”.
Como refere Carla Amado Gomes[7], a Comissão, na sua Comunicação interpretativa, reconhece que é na definição do objecto do contrato, na selecção de candidatos, na adjudicação do contrato e na sua execução que os critérios ambientais devem ser introduzido nos contratos públicos[8].
Tal como sublinha Diogo Duarte Campos[9], existe um fio condutor que acompanha estas quatro fases, designadamente a não limitação do acesso aos agentes económicos nem a discriminação dos mesmos, pois subsiste o receio de que estas preocupações ambientais possam contribuir para uma maior liberdade de escolha por parte da entidade adjudicante.

3. Posição do Tribunal de Justiça da União Europeia – Acórdão Concórdia Bus[10]

O  Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE) deu um grande passo com a decisão tomada no seu Acórdão Concórdia Bus. Neste Acórdão, que é anterior às Directivas de 2004, estava essencialmente em causa saber se era possível a adjudicação ser feita com base em critérios ambientais.
Vamos, em traços largos, resumir o caso subjacente ao acórdão: trata-se de um contrato público de serviços que tinha como finalidade a gestão de rede de gestão da rede de autocarros urbanos em Helsínquia. Por sua vez, a adjudicação foi feita tendo em conta a proposta economicamente mais favorável, em que se analisava um conjunto de factores, tais como o preço global da exploração, a qualidade material dos autocarros e a gestão da qualidade do ambiente por parte da entidade participante. Porém, neste caso em particular, concedia-se adicionalmente pontos aos concorrentes que conseguissem atingir emissões de óxido de azoto inferiores a 4g/kWh ou um nível sonoro inferior a 77db.
Face à decisão da entidade adjudicante ( neste caso, a comissão dos serviços comerciais), a concorrente Concórdia Bus interpôs recurso de anulação em que alegava que a atribuição destes pontos eram discriminatórios uma vez que apenas um concorrente (neste caso, a empresa HKL – Bussiliikenne) seria capaz de satisfazer esses requisitos.
A posição tomada pelo TJUE foi inovadora pois conclui que a entidade adjudicante, ao adjudicar a proposta que se apresente como a economicamente mais vantajosa, pode ter em conta critérios não económicos, como por exemplo a preservação do ambiente. No caso concreto, estes critérios estavam directamente relacionados com o objecto do contrato e não contribuem para uma ampla liberdade de escolha por parte da entidade adjudicante, dado que estes encontram-se expressamente previstos no caderno de encargos ou no anúncio do concurso.
O TJUE acrescenta que, não é pelo facto de existir um número reduzido de empresas capazes de realizar a proposta pretendida, que está logo em causa a violação do princípio da igualdade de tratamento. Mais, o TJUE salienta, ao longo do acórdão, que deve-se respeitar todos os princípios fundamentais da União Europeia, especialmente o princípio da não discriminação, da igualdade de tratamento, da concorrência efectiva, do direito ao estabelecimento e à livre prestação de serviços. Princípios estes que estão subjacentes na matéria relativa à contratação pública.
Parece que da leitura do acórdão podemos retirar a seguinte conclusão: o TJUE pretende que, mesmo sem necessidade de uma avaliação económica quantificável, as políticas ambientais devem ser ponderadas, desde que sejam limitadas ao objecto do contrato[11].
Apesar das políticas ambientais terem “nascido” por via interpretativa, o legislador comunitário considerou esta jurisprudência nas Directivas de 2004, em que, no âmbito da contratação pública[12], consagra a possibilidade de recorrer a critérios ecológicos.
   
4. As Directivas de 2004

Em 2004 a situação alterou-se com a publicação de duas Directivas: a directiva 2004/18/CE[13] e a directiva 2004/17/CE[14], do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março.
As principais inovações destas directivas focam-se sobretudo na selecção dos candidatos e na adjudicação do contrato[15], pois permitem a indicação de critérios secundários (ambientais e sociais) em matéria de contratos públicos[16].
No âmbito do art. 26º da Directiva 2004/18 e 38º da Directiva 2004/17 as entidades adjudicantes podem fixar “condições especiais da execução do contrato”, isto é, podem ter em linha de conta aspectos sociais ou ambientais, “desde que compatível com o Direito comunitário e indicados no anúncio do concurso ou caderno de encargos”.
Relativamente à selecção dos candidatos, temos que ter presente o disposto no art. 48º, nº 2, al. f) da Directiva 2004/18, pois a capacidade técnica/profissional dos participantes poderá ser avaliada mediante a “indicação de gestão ambiental (...) aquando da execução do contrato”. No entanto, o legislador restringe esta alínea aos contratos de empreitada de obras públicas, de serviços ou nos “casos apropriados”.
Para retirar algum conteúdo útil à expressão “casos apropriados”, supomos que se impõe um especial dever de cuidado às entidades adjudicantes ao recorrer a estes critérios ambientais. Parece que o legislador quis restringir os aspectos ecológicos àqueles contratos, em que a escolha é feita pela proposta economicamente mais vantajosa e o objecto esteja relacionado, o que vem a ser confirmado pelo art. 53º, nº1, al. a) da Directiva 2004/18 (tal como o caso Concórdia Bus).
O art. 50º da mesma Directiva também é importante já que, na eventualidade das entidades adjudicantes solicitarem aos concorrentes documentos que digam respeito a normas de gestão ambiental[17], devem ser aceites provas de natureza equivalente entregues pelos participantes[18].
Maria João Estorninho considera estas directivas inovadoras dado que realçam o carácter privilegiado de políticas secundárias[19]. Por sua vez, Diogo Duarte Campos[20] entende que estas directivas apenas limitam a afirmar o que já decorria das comunicações interpretativas da Comissão ou da jurisprudência do TJUE. Para o segundo autor, a concorrência efectiva e a realização do mercado interno mantêm-se como “pedra angular” apesar das políticas ambientais terem cada vez mais um maior relevo, não deixam de ser políticas secundárias, porque em caso de conflito, prevalece a realização de um mercado comum, em detrimento das políticas ambientais.
Em suma: os critérios ambientais só se “destacam” se a adjudicação for feita pela proposta economicamente mais vantajosa; esta tem que ser apreciada do ponto de vista da entidade adjudicante, desde que os critérios ecológicos se encontrem relacionados com o objecto do contrato. Queremos salientar que a vantagem a ser apreciada por parte da entidade adjudicante não significa que esta se tenha que repercutir directamente na sua esfera mas sim outros proveitos podem ser ponderados, como por exemplo a minimização de outros encargos por parte da entidade adjudicante, uma vez que não é apenas o carácter pecuniário que interessa mas sim a vinculação pela prossecução de políticas ambientais[21] e por isso a proposta deve ser analisada integralmente.
Após a aprovação das directivas, também em 2004, a Comissão lança um livro de instruções – Buying green (a handbook on environmental public procurement[22]– que pretende incentivar a prossecução por parte das entidades adjudicantes de contratos públicos “verdes” através da escolha de um título verde para o contrato, uso de rótulos ecológicos, a duração dos materiais e a sua reciclagem[23].  

5. O Código dos Contratos Públicos

O Código dos Contratos Públicos (doravante CCP) também faz referência a critérios ambientais[24]. A Prof. Doutora Maria João Estorninho considera que o momento-chave para integrar aspectos ambientais ocorre logo na fase inicial do procedimento de um contrato público, como a decisão de contratar, a delimitação do objecto e a identificação das necessidades a serem satisfeitas através do mesmo[25].
Com a decisão de contratar, nos termos do art. 36.º do CCP, a entidade adjudicante deve ter em linha de conta os princípios da prossecução do interesse público e da boa administração e avaliar de forma correcta todas as opções possíveis, incluindo os aspectos ambientais. Tomemos como exemplo, por exemplo a reutilização de bens, em vez de adquirir novos, a utilização de meios de comunicação virtuais, a redução do volume de compras ao estritamente necessário.
Torna-se por isso necessário definir o conteúdo essencial logo de início. Não é por mero acaso que, nos termos do art. 42.º, nº 6 do CCP, prevê-se expressamente que o Caderno de Encargos deve incluir cláusulas que digam respeito a condições ambientais, desde que relacionadas com a execução do contrato. Acrescenta o art. 43.º, nº 5, al. c) e d) CCP que o projecto deve contemplar também estudos ambientais, tal como o procedimento de avaliação de impacto ambiental. É visível aqui a preocupação por parte do legislador ao exigir uma cooperação entre o Direito dos Contratos Públicos e o Direito do Ambiente[26].
No que toca às especificações técnicas, o nº 2, al. c) e nº 7 do art. 49º do CCP tornam claro que os critérios ambientais têm que ser suficientemente precisos para que o objecto do contrato seja facilmente identificável pelos interessados. Caso as especificações técnicas sejam fixadas em termos de desempenho ou de exigências funcionais, nos termos do nº 12 do mesmo artigo não se pode aludir a nenhum processo específico de fabrico, para evitar o favorecimento de determinada entidade ou de determinado bem.
Relativamente aos critérios de adjudicação, previstos nos arts. 74º e 75º do CCP, os critérios ambientais prevalecem quando se verifique cumulativamente o seguinte[27]: ligação directa com o objecto do contrato; os critérios têm que estar previstos no anúncio e no caderno de encargos e por último, deve-se respeitar os princípio fundamentais dos Tratados da União Europeia, tais como igualdade tratamento e livre concorrência.

6. Conclusão

As questões ambientais foram introduzidas nos contratos públicos de forma gradual. Primeiro, através de uma simples Comunicação da Comissão, depois a decisão do TJUE veio auxiliar no rumo a tomar e só em 2004 a União Europeia legislou verdadeiramente sobre o assunto. Em Portugal, o assunto ecológico fez-se sentir a partir de 2008, com a entrada em vigor do CCP.
A adição dos critérios ecológicos não deixa de ser arriscada aquando das avaliações das propostas, dado que pode dar azo à exclusão de concorrentes, não porque estes não preenchem os pressupostos requeridos pela entidade adjudicante, mas sim pela facilidade que estas têm em favorecer um participante em detrimento dos outros e contornar os princípios da concorrência e da realização do mercado único. Talvez por esse motivo, o seu processo tenha sido lento e cauteloso.
No entanto, parece-nos que, a  matéria relativa ao ambiente não deve ser considerada como uma política secundária, pois assim que as entidades adjudicantes anunciam a abertura de um concurso público, estas devem estar desde início incluídas. Já que, tal como os outros princípios, a protecção do ambiente também está expressamente consagrada nos Tratados da União como ainda está prevista constitucionalmente[28].
            Por último, defendemos que os critérios não económicos (ambiente e condições sociais), devem prevalecer sobre os económicos, sob pena de, a longo prazo, a procura desta “sinergia” já não ser possível devido ao descuido em preservar o meio ambiente e à inexistência de recursos suficientes.

Helena Cristina Grilo dos Santos
Aluna nº 19623




Bibliografia:
  • GOMES, Carla Amado – Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2012;
  • VIANA, Cláudia – Os princípios comunitários na Contratação Pública, Coimbra Editora, 2007;
  • CAMPOS, Diogo Duarte de – A admissibilidade de políticas secundárias na Contratação pública: A consideração de factores ambientais e sociais, in Estudos de Direito Público, Coimbra Editora, 2011;
  • ESTORNINHO, Maria João - Direito Europeu dos Contratos Públicos, um olhar português..., Almedina, 2006;
  • ESTORNINHO, Maria João - Green Public Procurement – Por uma contratação Pública Sustentável, texto disponível em www.icjp.pt, 2012.


[1] Por exemplo, em razão da nacionalidade.
[2] Comunicação interpretativa sobre o Direito aplicável aos contratos públicos e as possibilidades de integrar considerações ambientais na contratação pública, p. 3.
[3] COM (2001) 274 final.
[4] Comunicação interpretativa, p. 4.
[5] As directivas relativas à contratação pública surgem a partir de 1971, no entanto, só e 2004, se faz referência a critérios ambientais.
[6] Comunicação interpretativa, p. 6.
[7] Carla Amado Gomes, Introdução ao direito do ambiente, p. 107 e ss.
[8] Para maior desenvolvimento, vide Comunicação Interpretativa, p. 10 a 23.
[9] Diogo Duarte de Campos, A admissibilidade de políticas secundárias na Contratação pública: A consideração de factores ambientais e sociais, p. 132.
[10] Acórdão TJUE, Concórdia Bus, de 17 de Dezembro de 2002 (Proc. C-513/99).
[11] Diogo Duarte de Campos, A admissibilidade de políticas secundárias.., p. 146.
[12] Diogo Duarte de Campos, A admissibilidade de políticas secundárias.., p. 132.             
[13] Relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras.
[14] Relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos nos sectores da água, da energia e dos transportes e serviços postais.
[15] Diogo Duarte de Campos, A admissibilidade de políticas secundárias, p. 148.
[16] COM (2011) 896 final - queremos alertar para o facto de estas Directivas se encontrarem em processo de revisão.
[17] Sistema comunitário de gestão ambiental e auditoria ou a normas de gestão ambiental baseadas nas normas europeias ou internacionais.
[18] Vale aqui o princípio da igualdade de tratamento.
[19] Maria João Estorninho, Direito Europeu dos Contratos Públicos, um olhar português, p. 53.
[20] Diogo Duarte de Campos, A admissibilidade de políticas secundárias, p. 147- 148.
[21] Diogo Duarte de Campos, A admissibilidade de políticas secundárias, p. 154.
[22] SEC (2004) 1050, de 18 de Agosto de 2004.
[23] Exemplos retirados de Maria João Estorninho, Green Public Procurement, p.16.
[24] Por influência do direito da União Europeia.
[25] Maria João Estorninho, Green Public Procurement, p. 18.
[26] Maria João Estorninho, Green Public Procurement, p.21.
[27] Por influência da Jurisprudência do TJUE com o seu Acórdão Concórdia.
[28] Art. 9º, al.d) e 66º da Constituição da República Portuguesa.

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