domingo, 31 de março de 2013

A problemática da protecção ambiental



A PROBLEMÁTICA DA PROTECÇÃO AMBIENTAL

1 - Introdução

O Direito do Ambiente é um direito jovem, tendo surgido em 1972 com a Conferência de Estocolmo, que emerge da sequência dos movimentos dos anos 60, nomeadamente Maio de 68 e a crise do Estado providência.
Começou a haver uma consciencialização da escassez das reservas, dando origem à questão ambiental, muito influenciada pelos movimentos hippies e filosofias de pacifismo. Os primeiros movimentos ambientais, quando surgem, são dotados de um certo radicalismo, sendo movimentos fora do sistema, com partidos políticos de contestação e de bandeira verde, especialmente em França, Alemanha e Itália, marcadamente radicalistas. À medida que se verifica uma adesão às ideias destes partidos, os partidos de massas vão também adoptar certas ideias relacionadas com a agenda ambiental, progressivamente, acentuando-se na época de 90.

2 - Os problemas ambientais e questões resultantes
Os problemas ambientais podem ser encarados por duas perspectivas:
1. Institucional – perspectiva das entidades que podem ajudar à defesa do ambiente, nomeadamente ONG e outras, havendo entidades com responsabilidades em matéria ambiental.
2. Individual – perspectiva de protecção do Homem individual, na medida em que aproveita os recursos naturais.

Nesta sede, impõem-se algumas questões:

2.1. - Qual deve ser a perspectiva do jurista?
O jurista tradicional oferecerá resistência a uma disciplina deste género, devido ao facto das normas de Direito do Ambiente serem técnicas e quase desprovidas de conteúdo valorativo, não gostando da dificuldade com que será confrontado devido a termos técnicos e científicos, além de que estas normas são subsumidas de mais do que um ramo de Direito, sendo estas de direito administrativo, civil, financeiro, penal e outros, logo, sendo impossível alcançar uma homogeneidade.

2.2. - Como é que deve ser redigida uma norma de Direito do Ambiente?
Podemos encontrar aqui duas pré-compreensões: visão antropocêntrica (a defesa do ambiente é instrumental à defesa da vida humana) e perspectiva ecocêntrica (a natureza tem valor em si mesma, independentemente do valor que o ser humano lhe atribui).
Qual a melhor? Aqui é necessário criar um caminho onde as duas perspectivas se encontrem, pois têm de haver normas de conservação das espécies independentemente do valor que o homem lhe da, mas também não nos podemos esquecer que é o homem quem retira as utilidades da natureza.

2.3. - Qual é o conceito de ambiente e de bem jurídico ambiental? É possível definir um conceito unitário de ambiente?
Não, pois todas as normas são diferentes – existem normas relativas à água, ao ruído, entre outras, não sendo possível encontrar um bem unitário. Também aqui podemos encontrar duas visões: conceito amplo de ambiente (componentes ambientais naturais e componentes ambientais humanos) e conceito estrito de ambiente (componentes ambientais naturais/recursos naturais).  [1]

2.4. - Qual é o alcance do bem jurídico ambiente?
Perante o art. 66º da CRP, deparamo-nos com um carácter autónomo, ou com um carácter instrumental face a outros bens jurídicos? A nossa Constituição inovou ao considerá-lo como um bem autónomo. E quanto à perspectiva? Subjectivista (Vasco Pereira da Silva – bem do homem, da terceira geração de Direitos Fundamentais[2]) ou objectivista (João Miranda - acentua não um direito mas sim um dever fundamental dos cidadãos, sendo um “direito-dever fundamental”). [3]

3 -
A contraposição entre as perspectivas objectivista e subjectivista
O que está em causa é um bem da natureza sobre o qual se desenvolveu uma construção de acordo com a época da altura, e sobre o qual se foi desenvolvendo uma consciencialização do seu perecimento – modelo de Estado de Direito Ambiental, pelo qual a ordem jurídica se foi tornando também verde (anos 70).
Deparamo-nos aqui com duas dimensões: dimensão subjectiva e dimensão objectiva; para Vasco Pereira da Silva, ambas as dimensões são necessárias e não devem ser confundidas – uma coisa é uma protecção individual atribuída por uma norma, outra é a protecção conferida pela ordem jurídica, independentemente dos sujeitos. Analisemos melhor esta questão.

A perspectiva subjectiva:
Podem existir ameaças à dignidade humana, decorrentes de agressões ambientais, sendo o núcleo fundamental de cada cidadão afectado por essa agressão; consequentemente, os indivíduos devem ter o direito a uma posição de defesa.
Existe neste contexto uma distinção entre Direitos do Homem e Direitos Fundamentais, mas para Vasco Pereira da Silva essa distinção já não faz sentido, uma vez que as normas internacionais relativas a Direitos Humanos são directamente aplicáveis – constitucionalismo global.
O nosso art. 66º construiu directamente um direito ao ambiente, mas nas Constituições onde esse direito não se encontra estabelecido, ele é construído através de outros Direitos Fundamentais patentes na Constituição.[4] [5]
 Adoptar esta perspectiva significa que é preciso ter uma dimensão evolutiva de Direitos Humanos. Neste sentido, é usual falar-se em gerações de Direitos Humanos; estas, não se substituem em cadeia - os direitos de segunda geração não se sobrepõem aos de segunda, coexistem. Também as gerações de Direitos Humanos não se podem desligar das pessoas; há quem considere que os Direitos Humanos de quarta geração não são das pessoas como tal mas sim dos povos – para Vasco Pereira da Silva, há aqui uma confusão entre a dimensão objectiva e subjectiva, pois todos os Direitos Humanos são dos indivíduos.
Para Vasco Pereira da Silva, existem 3 gerações de direitos ligadas a modelos estaduais[6]:
- geração do modelo de estado liberal: lógica de protecção contra o Estado
- geração do modelo de estado social: lógica da actuação
- geração do modelo de estado pós-social: lógica participativa.
Actualmente, o indivíduo deve poder intervir activamente na tomada de decisões públicas, além dos meios processuais de reacção que lhe assistem – status activus processualis. Não há apenas assim um alargamento de direitos (na medida de alargamento do elenco), há também uma transformação na estrutura de todos os direitos – estes começaram por nascer numa dimensão apenas negativa, mas chega-se agora à conclusão que é necessária uma vertente também interventiva (positiva). Assim, a transformação implica não só o aumento dos direitos mas também a sua transformação. Todos os direitos implicam a actuação do Estado, não se esperando no entanto que o Estado actue mais do que o próprio direito, havendo sempre no entanto a expectativa de um mínimo de actuação. A dimensão positiva (de actuação estadual) também depende assim da dimensão participativa (por parte dos cidadãos).
Vasco Pereira da Silva: o direito ao ambiente é um Direito Fundamental, uma dimensão essencial da dignidade humana, sendo um direito de todos e de cada um; há em simultâneo uma dimensão subjectiva e objectiva – há uma permissão normativa de aproveitamento de um bem por parte do individuo.

A perspectiva objectiva:
O direito português consagra o ambiente como um bem jurídico fundamental, o que obriga o Estado objectivamente a actuar na sua protecção – tutela jurídica objectiva. É um dever de actuação a todos os níveis, ou seja, o Estado/Tribunais têm o dever de actuar, mesmo na ausência de lei.
Em crítica à posição subjectivista supra explanada, com incidência especial sobre art. 66º da Constituição, vem Carla Amado Gomes[7] argumentar que a noção subjectivista que a doutrina tem de tal preceito é, apesar de apelativa, inócua, ambígua, imprestável e enganosa.
Para esta autora, existe neste preceito uma dificuldade de conciliar um bem cuja fruição pertence aos membros da comunidade em geral com a estrutura de um direito subjectivo, que pressupõe a existência de um substrato susceptível de apropriação individual. [8] Não existiria assim um direito de cada cidadão a uma parte de um ambiente equilibrado, mas sim um direito à idoneidade da sua composição qualitativa, tendo o cidadão direito a obter do Estado uma protecção dos bens ambientais mediante a prevenção e a sanção de acções lesivas, e o direito a que o Estado desenvolva acções de preservação e promoção dos bens ambientais.

4 – Conclusão

Assim, chega-se à conclusão de que estas duas dimensões completam-se, não se confundem, e estão as duas ligadas.

Entende Vasco Pereira da Silva que se podem adoptar nesta sede várias posições/pontos de vista[9]:
1. Inconsciência ambiental – ideia de que não há necessidade de actualizar esta matéria
2. Eco fundamentalismo – só há valores ambientais e que estes devem em todas as situações prevalecer
3. Posição mitigada - “act local, think global”. A natureza e os animais necessitam de protecção, mas não como direitos subjectivos; para Vasco Pereira da Silva, não faz sentido falar em direitos das coisas, dos animais, pois não tem aplicabilidade prática, especialmente quando têm surgido mecanismos para a tutela objectiva destes valores. [10]
4. Antropocentrismo e eco centrismo – quanto ao eco centrismo, prende-se com a ideia de que o Direito deve ter como centro a natureza. Vasco Pereira da Silva prefere falar em antropocentrismo ecológico, sendo que o Homem não pode ser indiferente à natureza e à sua protecção. Esta sua posição tem em conta os Direitos Fundamentais como base desta construção, assim como os seus limites e restrições imanentes.
Que elementos nos oferece a nossa Constituição para a resolução desta querela?[11]
A Constituição ocupou-se das questões ambientais pela perspectiva objectivista (enquanto tarefa estadual, art. 9º d) e e) CRP[12]) mas também pela perspectiva subjectivista (enquanto direito fundamental, art. 66º CRP[13]).
No artigo 9º, estamos perante uma norma programática, fixadora de um programa de actuação jurídico-estadual; está em causa a consagração de um princípio jurídico objectivo que se impõe a todo o ordenamento e estabelece fins a atingir;
No art. 66º, encontramos a consagração expressa do direito ao ambiente como um direito fundamental, consubstanciador de uma protecção jurídica individual[14].
Ora, tendo os direitos fundamentais uma dupla natureza (sendo em simultâneo direitos subjectivos/de defesa individual e elementos fundamentais da ordem jurídica objectiva/da comunidade), acompanhamos a posição de Vasco Pereira da Silva quando defende que a sua vertente subjectiva prevalece sobre a objectiva, uma vez que a função primacial dos direitos fundamentais é a de protecção do indivíduo face a agressões do Estado (assim também como de privados). [15]

Bibliografia:

1. AMADO GOMES, Carla, Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2012

2. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7ª edição

3. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Como a Constituição é Verde, AAFDL, 2001

4. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2003

5. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002

6. Aulas teóricas recolhidas presencialmente.
Mariana Lacueva Barradas, nº 18284
Subturma 7.








[1] Tomemos em conta o seguinte exemplo: a poluição e o ruído transcendem o simples problema da protecção dos recursos naturais, pelo que é difícil perceber se a norma é ambiental, ou de outro ramo; para a visão minimalista, as normas de ruido estão fora de conceito ambiente, mas para a visão maximalista estas normas encontram-se no âmbito do Direito Administrativo. No art. 6º e 7º da Lei de Bases do Ambiente podemos encontrar o elenco de componentes ambientais naturais e humanas.
[2] Tipos de gerações de direitos: primeira geração - liberdades políticas, religiosas, outras; segunda geração – direitos sociais); terceira geração – direitos ambientais, protecção de dados, outros; quarta geração – direitos novos.
[3] Para João Miranda, estas perspectivas não têm de se anular, mas sim serem reversos da mesma medalha, sendo que a perspectiva subjectivista é negada por si, por achar que o bem ambiente é insusceptível de apropriação individual, pertencendo a todos. Defende João Miranda que hoje em dia as questões ambientais estão na ordem do dia, sendo impossível ao jurista ser insensível a estas questões, nomeadamente a problemas relacionados com a própria utilização que o homem faz da natureza, pois nenhuma tem custo zero; o que tem de se avaliar é se esse impacto é socialmente aceitável, ex.: que nível de poluição é que podemos aceitar? Nesta perspectiva, cada vez mais o Direito tem de se preocupar com o ambiente, sem a tentação de se cair numa perspectiva ecofundamentalista; também a concepção certa não é a utilitarista (natureza como instrumento para o Homem). Conclusão: mediação entre estas duas realidades.

[4] Tomemos como exemplo o caso da Constituição Alemã, onde os Tribunais vieram a considerar o direito ao ambiente como um Direito Fundamental.
[5] Abramos um parêntesis quanto ao art. 66º. É de interesse explanar a posição de Carla Amado Gomes, que relativamente a este artigo, na sua obra de Introdução ao Direito do Ambiente, vem afirmar ser um caso de “obesidade normativa”, sendo o seu nº2 causador de uma indefinição do objecto de protecção da norma.
[6] PEREIRA DA SILVA, Vasco, Lições de Direito do Ambiente, p. 21ss
[7] AMADO GOMES, Carla, Introdução ao Direito do Ambiente, capítulo “O equívoco do direito ao ambiente”
[8] AMADO GOMES, Carla, Direito do Ambiente, “Uma leitura alternativa”
[9] PEREIRA DA SILVA, Vasco, Lições de Direito do Ambiente, p. 25ss
[10] Lembrar acção pública e acção popular, que permitem defender interesses da colectividade, onde é possível a tutela de valores e bens objectivos.
[11] PEREIRA DA SILVA, Vasco, Como a Constituição é Verde, capítulo “A Constituição Portuguesa de Ambiente”
[12]Artigo 9.º - Tarefas fundamentais do Estado
São tarefas fundamentais do Estado:
(…)
d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;
e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território;
(…)”.
 
[13]Artigo 66.º - Ambiente e qualidade de vida
 1. Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
2. Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:
a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão;
b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem;
c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;
d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações;
e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas;
f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial;
g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente;
h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.”
[14] GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1121ss
[15] PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, p. 178

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